domingo, 8 de julho de 2012

GAGA HEIGHTS

No primeiro semestre do ano passado eu estava ainda às voltas com preocupações referentes à conclusão da escrita da minha tese e do meu doutorado. Como se não bastasse, eu também estava com aulas de Literatura Inglesa para ministrar na UNESP - Araraquara e na UNICASTELO - Descalvado. Por conta de tantas preocupações causadas por uma pós-graduação e dois empregos, minha mente estava muito atribulada para sentar e preparar uma aula decentemente como hoje tenho tempo de fazer.

É nesses momentos de adversidades que entra o "jogo de cintura", também conhecido como "improviso", por parte do professor. Como eu mesmo ensino para os meus alunos, se você não sabe lidar com o inesperado e não sabe improvisar você não serve para ser professor, pois aquela aulinha quadradinha e bonitinha previamente preparada nunca será dada: aula preparada em plano de aula NUNCA vai sair do papel simplesmente por que não existe como planejar uma aula. Uma aula só poderia de fato ser planejada se fosse possível saber previamente o que vai acontecer na situação de ensino e como estão os alunos em termos emocionais. Como quem consegue fazer isso são apenas seres que têm o poder de prever o futuro, portadores da Espada Justiceira que sabem usar a Visão Além do Alcance, a professora Sibila Trelawney, Usutu e Isaac Mendez (de Heroes), deuses, magos, planinautas etc., você já notou que nem eu, nem você e nem ninguém vai conseguir planejar uma aula. Além disso, como eu também sempre digo para os meus alunos e para os meus amigos pedagogos: Didática é para os fracos. Ou você nasce com o Dom de ser didático, ou você pode desistir de sê-lo, pois Didática não se ensina e nem se aprende (sorry, teóricos da Pedagogia, mas vocês estão, mais uma vez, se enganando, enganando e sendo enganados neste ponto...). Didática é um fenômeno de interação absolutamente imprevisível, vago, momentâneo e evanescente que só funcionada em dado momento, em dada situação e com dados indivíduos, tendo que ser permanentemente renovado, remodelado e adaptado. Por isso, meu filho e minha filha, Didática é algo que a gente já nasce sabendo.

Mas porque eu estou dizendo tudo isso pra vocês, que a estas alturas já estão achando que eu vou encher linguiça? Por que hoje eu vou fazer algo prosaico: vou contar a história de um dos meus improvisos como professor.
Não se trata de qualquer improviso, nem de uma cena engraçada, nem de alguma cretinice, que é com que normalmente os improvisos se parecem. Trata-se de um improviso tão inusitado e que acabou fazendo tanto sentido que me deixou assombrado e em dúvida se se tratou mesmo de um improviso ou se foi um ato de interpretação até certo ponto inconsciente diante de duas coisas aparentemente incoerentes. Fato é, no entanto, que a articulação da ideia deste improviso me levou, e ainda me leva, a considerar a possibilidade de pesquisar academicamente a relação entre as duas coisas nele envolvidas.

Chega de mistérios e rodeios e vamos ao que interessa.

No primeiro semestre de 2011, assim como neste primeiro semestre de 2012, estava sob minha responsabilidade uma disciplina de Literatura Inglesa em que se estuda o romance do século XIX. O romance que eu escolhi para analisar com os alunos foi, é claro, O Morro dos Ventos Uivantes [Wuthering Heights, 1847], de Emily Brontë, o mesmo que foi analisado neste ano.
A primeira questão que me coloquei foi: como abordar este romance com os alunos?
Trata-se de uma obra tão rica, tão complexa, tão cheia de possibilidades, que fica difícil pensar em algo que, ao mesmo tempo, não seja tão introdutório e nem tão avançado para um aluno de graduação que já viveu metade de sua vida no século XXI, um século que trocou a profundidade pela superficialidade. O Morro dos Ventos Uivantes não permite uma abordagem superficial: o próprio texto, da forma com que foi escrito, resiste a isso; mas também um mergulho muito profundo em seus meandros, como os que costumo fazer em minhas leituras acadêmicas, pode ser algo traumático e indigerível a um graduando que não tenha as experiências corretas de leitura (e este é o caso da maioria esmagadora deles).
Foi diante destas questões que eu me fiz uma pergunta crítica: Cido, porque você foi escolher um texto tão perigoso? Ao que meu lado aventureiro e investigador, uma mistura de Indiana Jones com Mestre Yoda, respondeu que a escolha estava certa, visto que se trata de uma obra que pode mudar vidas.
Como abordá-la, então? Era a pergunta que me incomodava. Possibilidades foram surgindo e sendo descartadas na minha mente:

a) uma leitura pós-estruturalista.
OK. Perfeito. É, certamente, a abordagem teórica mais adequada, mas os Departamentos de Literatura de todas as universidades do estado de São Paulo são muito conservadores e não deixam chegar aos alunos os conhecimentos necessários para eles minimamente entenderem uma leitura pós-estruturalista de uma obra literária. Dificilmente um aluno de graduação de terceiro ou quarto ano leu Freud, Marx, Barthes, Foucault, as Feministas e/ou os Desconstrucionistas. Possibilidade descartada até segunda ordem.

b) uma leitura comparatista.
Incrível! Ideia maravilhosa! Há toda uma tradição de escritores e escritoras que foram influenciados por O Morro dos Ventos Uivantes como Kate Chopin, Virginia Woolf, Edith Wharton, Charles Dickens, Henry James etc. Mas que aluno de graduação leu esses caras? Para piorar, eis que eu descubro que os protagonistas da asquerosa série Crepúsculo estão lendo e tentando transportar para suas vidas a história de Catherine e Heathcliff!!! E esta descoberta deu-se da pior e mais traumática maneira possível: primeiro, fui à livraria e me deparei, na entrada, com uma pilha de edições da obra-prima de Emily Brontë cuja capa dizia em letras garrafais "a obra que deu origem à série Crepúsculo". Desnecessário dizer que quase tive um troço diante de uma barbaridade dessas. Fiquei ali diante da pilha de exemplares, paralisado por vários minutos, em estado de absoluto horror ante aquelas palavras abomináveis. Como se não bastasse, no primeiro dia de aula de 2011, quando anunciei que iríamos estudar O Morro dos Ventos Uivantes, uma aluna vira para mim, em estado de êxtase epifânico, na frente de toda a sala e diz que estava muito feliz e ansiosa com isso porque ela estava lendo Crepúsculo e enfim poderia conhecer melhor a obra sobre a qual Edward e Bella tanto falavam. Foi o absurdo, o surreal da situação que não me permitiu colocar a infeliz da aluna para fora da minha aula para sempre. Isso não aconteceu neste ano, graças a Deus!
Como vocês podem notar, sem a menor chance de abordar o romance nesta perspectiva.

c) uma leitura estruturalista, new critic, formalista etc.
Clássicas demais. Ultrapassadas demais. Reducionistas demais. O básico do básico: o feijão com arroz da Teoria Literária. É isso que os alunos basicamente aprendem nesta disciplina nas universidades do estado de São Paulo, e falo por experiências própria, visto que foi justamente isso que aprendi em Teoria Literária: que há 3 tipos da narrador (autodiegético, homodiegético e heterodiegético), 2 tipos de personagens (planas e redondas), 3 tipos de espaço (interno, externo e psicológico), que a interpretação do texto é imanente ao texto etc. O que ninguém me ensinou, e ninguém ensina mesmo, é como articular tudo isso para extrair uma possibilidade de interpretação para um objeto artístico que é contrário a quaisquer tipos de classificações, como é o caso do texto literário.
Fora de cogitação estas abordagens. Elas reduziriam a grandeza de O Morro dos Ventos Uivantes.

d) uma leitura psicanalítica, mas não-ortodoxa.
Esta foi a única possibilidade adequada que restou. A Psicanálise é algo praticamente de domínio público, uma tradição interpretativa constituída e muito produtiva para interpretar literatura. O Morro dos Ventos Uivantes é uma aula prática de Psicanálise, logo não poderia haver abordagem melhor. Junte-se a isso alguns toques sutis e imperceptíveis de Desconstrução e temos uma abordagem rica de significados para os alunos.
Pronto! Decidido: uma leitura psicanalítica não-ortodoxa de linha freudiana e com pequenos toques imperceptíveis de Jacques Derrida para a obra máxima de Emily Brontë.

Eu comecei, então, a refletir como faria a abordagem, quais termos utilizaria, quais conceitos, quais cenas e aspectos do romance etc. Enfim, comecei a montar as aulas em minha mente e, um belo dia à noite, ouvindo música e pensando no Nada (não há nada mais maravilhoso do que pensar no Nada! É como pensar em tudo ao mesmo tempo...) enquanto dirigia de volta de Descalvado para São Carlos depois das aulas, eis que uma ideia estranha insinuou-se insidiosamente por entre as sinapses dos meus neurônios perturbados pela indecidibilidade do indecidível. Aquela ideia foi contaminando a minha mente de tal forma que ela passou de uma abstração para um evento no mundo físico, ainda que um evento sobrenatural: um sussurro de um nome (Lady Gaga), um sussurro de um título de música ("Bad Romance"), um movimento repentino com o dedo no rádio do carro para ouvir o som e prestar atenção na letra.
Em segundos o espaço diminuto e recluso do carro, cercado pela escuridão e pelo silêncio sepulcral de uma noite sem luar, estava tomado pelos acordes poderosos de "Bad Romance", de Lady Gaga, uma das músicas mais conhecidas, importantes e inovadoras desta que é o atual fenômeno do Pop, o que aconteceu de mais diferenciado na música pop dos últimos 20 anos, ainda que Madonna a tenha chamado, não sem uma pontinha de inveja, "reductive".


Eis a letra da música:

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

I want your ugly
I want your disease
I want your everything
As long as it's free
I want your love
Love, love, love I want your love

I want your drama
The touch of your hand
I want your leather-studded kiss in the sand
I want your love
Love, love, love I want your love
(Love, love, love I want your love)

You know that I want you
And you know that I need you
I want it bad, your bad romance

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
(Oh-oh-oh--oh-oooh!)
I want your love and
All your lover's revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

I want your horror
I want your design
'Cause you're a criminal
As long as your mine
I want your love
(Love, love, love I want your love)

I want your psycho
Your vertigo stick
Want you in my rear window
Baby your sick
I want your love
Love, love, love
I want your love
(Love, love, love I want your love)

You know that I want you
('Cause I'm a freak bitch baby!)
And you know that I need you
I want a bad, bad romance

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
(Oh-oh-oh-oh-oooh!)
I want your love and
All your lover's revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk passion baby
Work it
I'm a freak bitch, baby

I want your love
And I want your revenge
I want your love
I don't wanna be friends

J'veux ton amour
Et je veux ton revanche
J'veux ton amour
I don't wanna be friends
Oh-oh-oh-oh-oooh!
I don't wanna be friends
(Caught in a bad romance)
I don't wanna be friends
Oh-oh-oh-oh-oooh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)
Want your bad romance!

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh!
I want your love and
All your lovers' revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)
Want your bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Vários pontos me chamaram a atenção nesta letra, pontos estes que parecem guardar uma forte ligação com o enredo de O Morro dos Ventos Uivantes: "caught in a bad romance" ("presa em uma história de amor do mal"), "I want your love" ("eu quero o seu amor"), "I want your drama" ("eu quero o seu drama"), "I want your revenge" ("eu quero a sua vingança"), "You and me could write a bad romance" ("você e eu poderíamos escrever uma história de amor do mal"), "I want your love and / All your lover's revenge" ("eu quero o seu amor e / toda a sua vingança de amante"), "I want your psycho" ("eu quero a sua insanidade"), "I don't wanna be friends" ("eu não quero que sejamos amigos").

O que é o enredo de O Morro dos Ventos Uivantes senão um "bad romance" ("uma história de amor ruim" ou, mais adequadamente, "uma história de amor do mal")? O que buscam as personagens principais, Catherine Earnshaw e Heathcliff, senão o amor? Essa busca é dramática, resulta em vingança, é insana tanto por parte de Catherine ao voltar como fantasma de si própria quanto por parte de Heathcliff com sua vingança. Apesar dos dois protagonistas serem, inicialmente, amigos, Heathcliff, a grande personagem satânica da obra, não quer apenas amizade mas sim casar-se com Catherine.
As relações amor/ódio e amor/vingança são elevadas a tal ponto que suas barreiras se amainam e os membros desses pares se mesclam, se interpenetram e não mais se excluem mutuamente. Emerge daí uma história de amor do mal, uma história de amor entre seres do mal que vai além da Vida e da Morte e além do próprio Bem e do próprio Mal. Sim, Catherine e Heathcliff são seres malignos consigo próprios e com os outros que os rodeiam. No entanto, nenhum de nós, leitores, consegue sentir algo de ruim por eles: as duas personagens foram vítimas inexoráveis de circunstâncias não propícias para que seu amor pudesse ser vivenciado enquanto eram habitantes deste mundo que chamamos erroneamente de real. Somente no Além, onde não há amarras ou impedimentos de quaisquer tipos, onde não há preconceitos e normas sociais espúrias, eles conseguiram se encontrar em paz e vivenciar o que sentiam um pelo outro.
Eis uma das minhas passagens preferidas da obra:

an odd thing happened to me about a month ago. I was going to the Grange one evening — a dark evening, threatening thunder — and, just at the turn of the Heights, I encountered a little boy with a sheep and two lambs before him; he was crying terribly; and I supposed the lambs were skittish, and would not be guided.
‘What is the matter, my little man?’ I asked.
‘There’s Heathcliff and a woman yonder, under t’ nab,’ he blubbered, ‘un’ I darnut pass ‘em.’
I saw nothing; but neither the sheep nor he would go on so I bid him take the road lower down. He probably raised the phantoms from thinking, as he traversed the moors alone, on the nonsense he had heard his parents and companions repeat. Yet, still, I don’t like being out in the dark now; and I don’t like being left by myself in this grim house: I cannot help it; I shall be glad when they leave it, and shift to the Grange.
(BRONTË, 2003, p. 282)

Romântico? Mexicano? Shakespeareano?
Sim, todos estes adjetivos se aplicam a O Morro dos Ventos Uivantes. Mas uma história de amor do mal, a la Gaga, é tudo isso: romântica, mexicana e shakespeareana. Pós-moderna, em outras palavras. Pop. Pois tudo que é Pop, desde que seja de qualidade, se torna clássico e permanece através dos tempos, assim como os românticos, o dramalhão mexicano, as peças de Shakespeare e a obra-prima de Emily Brontë. E sim, eu estou sugerindo que Lady Gaga tende a permanecer através dos tempos pelo simples motivo de que o que ela faz enquanto artista é bom.
Tão bom quanto Shakespeare, Cido Rossi, seu louco, desvairado?!!!
Sim, tão bom quanto o Supremo Shakespeare e a Suprema Emily Brontë. Como eu sempre digo, Shakespeare era a Lady Gaga do século XVI: ele fazia Londres vir a baixo com o poder vibrante de suas obras popularíssimas entre nobres e plebeus; e Emily Brontë foi a Lady Gaga do século XIX: ela era mais lida que o próprio Shakespeare naquela época.


* * *

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BRONTË, Emily. Wuthering Heights. Hazleton: The Pennsylvania State University, 2003.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

APOCALIPSE

Vamos ao primeiro post de 2012!
Como não poderia deixar de ser no ano do Apocalipse, esta primeira postagem será justamente sobre o Juízo Final, o Crepúsculo dos Deuses, o Final dos Tempos, a Revelação, o Fim, a Sétima Trombeta, o Último Dia (que, como todos nós sabemos, é o próximo dia 21/12 ou, para alguns, 12/12... rsrsrsrssrsrsrsrs) etc.

Mas eu não vou fazer aqui toda uma articulação filosófica sobre essa questão. Ela é totalmente desnecessária. Já temos filósofos, místicos, historiadores, teólogos, apresentadores de TV, Aparecida Liberato etc. que já discutiram a problemática com maior propriedade que eu. No que me concerne, no próximo dezembro participarei do Viradão do Apocalipse e, caso o Fim do Mundo de fato ocorra, voltarei à Santa Casa do Pai bebericando uma boa dose de Famous Grouse ou Chivas.

O que vou fazer é uma resenha de um livro, um dos livros mais impressionantes, brilhantes e bem escritos que já li até o momento. Trata-se de

A BATALHA DO APOCALIPSE, de Eduardo Spohr


ESTA RESENHA NÃO CONTÉM SPOILERS

Eu já mencionei este livro em uma das respostas aos comentários do meu post sobre Os 10 livros que você tem que ler antes de morrer. Naquela época, eu ainda estava lendo a obra, lendo muito lentamente é verdade, visto que estava às voltas com meu doutorado.
Mas terminei de lê-la recentemente e a impressão que ficou foi de "gente, que coisa brilhante!".

A Batalha do Apocalipse trata de anjos, arcanjos, demônios e humanos ao longo de toda a existência conhecida da Humanidade até o Pós-Apocalipse. Sim, é isso mesmo: é narrado também o que acontece depois do Apocalipse, o que é bastante inusitado mesmo para os padrões da literatura fantástica.

A personagem principal é Ablon, um anjo renegado, que vive entre os terrenos há séculos. Nesta convivência forçada ele conheceu e encontrou muitas coisas e muitos seres: boa parte da natureza humana, seja seu lado bom, seja seu lado ruim; uma feiticeira necromante chamada Shamira, personagem encantadora, talvez até mais encantadora do que o próprio Ablon, que é um típico guerreiro na linha dos nórdico-germânicos Sigurd e Siegfried e do Beowulf do poema homônimo; um dos reis da Babilônia; o rei da Atlântida; o Anjo Exterminador de Sodoma e Gomorra; a Estrela Guia dos reis magos, que é na verdade um anjo; dentre diversos outros seres e coisas realmente muito interessantes e muito diferentes do que normalmente encontramos nas típicas narrativas fantásticas de aventura.

Ablon também enfrenta, no decorrer da história, vários inimigos muito poderosos, dentre eles três dos cinco arcanjos criados por Spohr em seu universo mítico: Gabriel, Lúcifer e Miguel. A batalha com Miguel, a mais esperada da trama (mas não a última e nem a de importância cabal), é simplesmente uma das sequências literárias mais brilhantes e bem construídas que eu já li, demonstrando um grande domínio não só do enredo, mas também e principalmente da técnica narrativa por parte do autor.

Aliás, o domínio da técnica narrativa é um dos pontos fortes de A Batalha do Apocalipse e, de longe, o que mais me impressionou, especialmente no que concerne às complicadas questões estruturais do espaço e do tempo.
A história se passa em várias eras da História da humanidade e para contar os fatos importantes do enredo que ocorreram nessas eras Spohr se vale de um complexo jogo de flashbacks, o que, na linguagem técnica da Teoria Literária é uma anacronia chamada analepse, ou seja, o movimento de parar a narrativa do enredo em um determinado ponto e voltar a um momento anterior ao próprio enredo para explicar o que aconteceu no ponto de parada ou o que vai acontecer em seguida.
O cinema usa muito esse clichê a partir da seguinte situação: uma personagem dorme e tem um sonho com algo que aconteceu antes de começar o enredo do filme. Quando a personagem acorda, coisas ocorrem dali para frente que remetem ao seu sonho.
Na literatura as possibilidades dessa técnica são muito mais amplas e complexas. Quando o escritor não a domina muito bem temos verdadeiros lixos literários. Porém, quando o escritor consegue dominá-la adequadamente ele pode nos presentear com  uma obra-prima. Este é o caso de Spohr em A Batalha do Apocalipse.
Somos transportados com toda leveza e naturalidade para a Babilônia, para a Roma antiga, para a China, para o Rio de Janeiro, para Portugal e para Israel sem que a história perca o sentido e sem que fiquemos com aquela desagradável sensação de "porque/para que viajar tanto?". Ou seja, Spohr constrói o flashback de forma que ele faça total sentido para a história, de forma que o enredo caminhe adiante e não se perca ou volte para trás (como, aliás, constitui-se a técnica propriamente dita: flashback = voltar para trás). O resulta é um todo muito rico de sentidos, uma história repleta de aventuras, significados e nuances, e um romance de arquitetura magistral que remete à obras arquetípicas da estruturação narrativa como Frankenstein, A Abadia de Northanger, Drácula e, eu arriscaria dizer, mesmo Os Irmãos Karamázov e O Nome da Rosa. O típico livro que se começa a ler e não se consegue parar, mas que não se sabe exatamente por que ele nos causa essa reação.

Outro ponto muito interessante de A Batalha do Apocalipse são as personagens. Excetuando-se Ablon — o anjo renegado que é evidente e obviamente o motor da história, seu herói inquestionável e uma personagem profunda, rica, de grande beleza física (a imagem de Ablon em minha mente é de um homem de uma beleza estonteante) e inteligência —, as outras personagens também são muito bem construídas e encantadoras. Dentre a miríade dessas personagens, que por si só já chama a atenção dada a incrível capacidade de Spohr em conseguir manipular de maneira coerente, lúcida e concatenada uma grande quantidade de personagens complexas, algumas merecem especial destaque.

Primeiramente, a necromante Shamira. Uma mortal única de sua raça, pois teve sua aldeia dizimada, que fora feita escrava na antiga Babilônia e que acabou sendo salva por Ablon. Isso mudou seu destino — não se iludam com o aparente clichê do "salva pelo anjo" que se pode invocar aqui. Garanto que se trata de algo bem mais complexo que isso — e levou Shamira a encontrar o Elixir da Vida Eterna, ainda que o narrador de Spohr jamais mencione a questão nestes termos. Shamira é uma mortal que se tornou imortal sem, ao que parece, ter feito um ritual de lichificação, ou seja, sem ter passado pela morte. Ela não é um morto-vivo de nenhuma das espécie que conhecemos nas tradições literárias (vampiro, zumbi, lich etc.). A Feiticeira de En-Dor, como é chamada pelo narrador e por algumas personagens, permanece humana durante milênios e gosta de colecionar conhecimentos ocultos: em sua jornada existencial ela adquiriu os arcanos mágicos de praticamente todas as culturas do mundo antigo e moderno por meio exclusivo do estudo in loco desses arcanos. Vemos, então, Shamira estudando com as fadas e com os elfos da Inglaterra antiga, com os chineses, com os turcos, com os romanos etc.
É difícil dizer se Shamira, acima de tudo uma bruxa, é boa ou má, pois ela é uma daquelas personagens-chave que aparecem nos momentos cruciais para ajudar o herói Ablon. Na verdade, eles formam o par romântico da história, mas de uma maneira bastante peculiar, sem os típicos clichês shakespeareanos e mexicanos em que normalmente recaem os pares românticos, mas também sem as complexidades de um amor como o de Heathcliff e Catherine Earnshaw em O Morro dos Ventos Uivantes. O amor de Ablon e Shamira é o amor-amor, o amor verdadeiro, não o amor-paixão, e isso muda tudo na história à medida que não há um deslize nem para o melodramático e nem para a morte.
Shamira, é claro, será a vítima dos grandes e verdadeiros vilões da história, que só se revelam nos capítulos finais, e será salva por Ablon, é óbvio. No entanto, ela também o salvará de uma maneira que me surpreendeu muito: foi a primeira vez que li um texto em que as artes mágicas de um ser humano foram capazes de salvar por completo um ser divino como um anjo.

Uma outra personagem que realmente me deixou perplexo foi o arcanjo Gabriel, um dos cinco arcanjos criados pelo próprio Deus para ajudá-Lo nas Batalhas Primevas contra as forças das trevas lideradas por uma deusa chamada Tehom. É interessante notar, antes de mais nada, as escolhas de Spohr aqui: Deus é um guerreiro que luta contra uma deusa e a vence, o que talvez possa ser lido como uma alusão ao domínio patriarcal da sociedade desde sempre. Ao que tudo indica, o Inferno foi feito com partes do corpo de Tehom, o que nos remete à cosmogonia nórdica na qual o Universo é construído a partir dos pedaços do corpo do gigante Ymir. Há cinco arcanjos na história — Miguel, Lúcifer, Gabriel, Rafael e Uziel, criados nesta ordem por Deus —, o que contraria a tradição angélica cabalística que lista nove arcanjos. Ao que parece, Spohr segue a tradição bíblica cristã aqui, e não a judaica, pois seus arcanjos são os mencionados no texto bíblico de linha cristã, ainda que o nome "Uziel" não seja tão fiel a essa tradição (o nome desse quinto arcanjo deveria ser Uriel, normalmente reconhecido como o Anjo da Morte no Livro do Êxodo, mas este ponto também é relido por Spohr de maneira muito peculiar). Lúcifer, é claro, é pintado como reza a tradição: o arcanjo rebelde, traiçoeiro etc., mas sem os absurdos da imagem gargulesca do Demônio que se cristalizaram no imaginário ocidental. O que vai chamar muito a atenção é que ele não será o único grande vilão de A Batalha do Apocalipse.
No que concerne a Gabriel, ele é chamado pelo narrador por seus epítetos cristãos clássicos: o Mensageiro de Deus e o Anjo da Anunciação. Gabriel vai se opor aos dois grandes vilões da trama e, apesar de ter lutado contra Ablon em dado momento, vai restabelecer sua amizade com o anjo renegado e constituí-lo general de suas forças rebeldes. Há uma fala de Gabriel a Ablon no final da obra que me emocionou como há muito um livro não era capaz de me emocionar (sim, reconheço, eu chorei):

— Assisto hoje ao último pôr do sol, com o mesmo fascínio com que contemplei o primeiro — confessou, melancólico. — Sou um vigilante do mundo, general, lanceado pela saudade e castigado pela lembrança. Posso sentir a passagem das eras e tocar as marcas do tempo, como as pegadas na areia, que vão sumindo a cada lambida do mar (SPOHR, 2010, p. 479).

Mas isso não é tudo quanto ao Mensageiro de Deus. Há uma passagem em A Batalha do Apocalipse que, à semelhança do movimento de desenvolver uma teoria sobre a Cristandade inaugurado por O Código Da Vinci (a teoria existente neste livro de Dan Brown é o seu único aspecto de interesse), propõe uma leitura simplesmente inovadora, inusitada e muito audaciosa em relação à encarnação de Jesus Cristo entre os humanos. É claro, neh minha gente, que eu não vou revelar aqui essa teoria, mas eu posso dizer que fiquei simplesmente fascinado com a possibilidade, uma possibilidade que, vista com olhos desprendidos dos dogmas católicos, é muito lógica, além de também explicar o amor entre Ablon e Shamira.
De modo geral, especialmente nos capítulos finais da obra, há uma reflexão sobre o amor que relaciona Gabriel, Ablon e Shamira e desconcerta o leitor quando este se depara, por exemplo, com a seguinte fala do narrador:

A realidade, definida pelo Mensageiro [Gabriel], era absolutamente clara e singela. Deus é a totalidade do universo, e a compreensão do infinito. Ele é a pura bondade, o amor irrestrito e a aceitação do desigual. Na ciranda dos sentimentos, o amor é o mais grandioso, porque reúne uma mistura de sensações convergentes, tais como a paixão, a amizade e o respeito (SPOHR, 2010, p. 483).

Claro está que tal concepção é eminentemente cristã e totalmente discutível, mas eu não me lembro de ter lido um texto literário que a colocasse de forma tão despretenciosa e tão límpida pois, repito, a tradição da Literatura mostra que, quando há o tratamento do amor, o texto desliza ora para o melodrama à la Romeu e Julieta, ora para a morte à la O Morro dos Ventos Uivantes. Até certo ponto, A Batalha do Apocalipse rompe com essas tradições neste aspecto, ainda que permaneça muito atrelado à outras tradições, especialmente as das convenções da literatura fantástica de aventura.

E quanto ao Apocalipse: o que acontece?
Sim, o Apocalipse ocorre em A Batalha do Apocalipse, e de maneira até bastante fiel às tradições estabelecidas pelo Apocalipse de São João, pelo Livro de Daniel e pelos profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, além de incorporar visões mais recentes (guerras nucleares, por exemplo). Há, é claro, adaptações e transformações bastante engenhosas da questão por parte de Spohr, o que torna tudo bem mais interessante do que o geral das ficções do gênero. A solução que é dada para o depois do Apocalipse, o Pós-Apocalipse, aspecto que quase nunca é tratado pela Literatura e, quando o é, constitui um dos clichês da ficção científica (o mundo pós-apocalíptico no qual o Apocalipse já aconteceu há bastante tempo), é realmente muito bem arquitetada e me levou a uma quase Epifania ante tamanho cuidado cirúrgico na construção do enredo neste ponto.

Em suma, A Batalha do Apocalipse é uma obra-prima, algo único do gênero na Literatura Brasileira. O cuidado com a escrita, o cuidado com a estruturação da história, a magistral condução do enredo, a habilidade na construção das instâncias clássicas da narrativa (espaço, tempo, personagens); todos estes aspectos tornam a obra algo muito acima da média da ficção fantástica nacional que, como eu já disse na resenha de Anjo: a Face do Mal e repito, é pífia e de qualidade precária.
Quando leio um livro de André Vianco, o Stephen King tupiniquim, ou da maioria dos escritores de ficção fantástica nacionais tenho vontade chorar diante da total falta de cuidado com o texto em si: mal escrito, desconexo, às vezes incoerente, inchado de frases feitas e curtas demais, sem revisão gramatical e editorial. Nada disso ocorre na textualidade de A Batalha do Apocalipse. Excetuando-se um jogo um tanto quanto incomum de repetições ao final da obra, que evidencia a mão canhestra de um editor mexendo aonde não devia ou uma preocupação totalmente desnecessária por parte do autor em deixar tudo muito claro ao leitor, a obra praticamente não apresenta nenhum problema de construção e nenhum dos problemas que se verifica comumente na ficção fantástica brasileira.

É mais um daqueles seletíssimos livros de ficção fantástica nacional que eu recomendo e, neste caso, recomendo veementemente, pois se trata de um texto que nada deixa a desejar ao supra-sumo dessa vertente da ficção nas literaturas inglesa e norte-americana, os inventores do gênero, e também nas literaturas italiana e espanhola, os principais continuadores e desenvolvedores.
Eu colocaria A Batalha do Apocalipse na mesma linha das obras de Kim Newman, Neil Gaiman, Carlos Ruiz Zafón e Umberto Eco, ou seja, dos atuais grandes mestres do fantástico.
E discordo completamente da aproximação que José Louzeiro faz de A Batalha do Apocalipse com O Senhor dos Anéis na orelha da quinta edição da obra. Até o momento não há nada escrito por um brasileiro ou brasileira que possa ser comparado, mesmo que de longe, a O Senhor dos Anéis, e a obra de Spohr não constitui exceção. Para começar, uma questão básica: Spohr não cria uma mitologia ou línguas próprias e inovadoras, antes aproveitando-se das já conhecidas pela humanidade e das já trabalhadas na tradição literária ocidental. Já aqui ele se distancia muitíssimo de Tolkien e não, o simples fato da obra apresentar características evidentes do gênero épico — sim, há vários aspectos recorrentes do épico em A Batalha do Apocalipse, como a figura do herói, a grandiosidade dos acontecimentos, as forças envolvidas etc. em nada a torna minimamente próxima do tipo de épica que constitui O Senhor dos Anéis, uma épica muito mais elaborada, que dialoga com e se estabelece a partir de toda uma tradição clássica do gênero e de um teor de complexidade ainda não atingido por nada escrito no Ocidente desde sua publicação.
A meu ver, esta obra de Spohr talvez inaugure um novo caminho, mesmo uma nova vertende, na ficção fantástica brasileira que, num futuro indefinido, pode vir a resultar na aparição na literatura nacional de uma obra que se aproxime da obra máxima do mestre sul-africano. Percebam que este feito de A Batalha do Apocalipse não é pouca coisa. Mas, até lá, é totalmente imprudente, inadequado, exagerado e pretencioso aproximar esta ou qualquer outra obra de literatura fantástica brasileira à obra de Tolkien.
No entanto, atualmente é até compreensível tal absurdo, visto que virou um surto mundial comparar boas obras de literatura fantástica com O Senhor dos Anéis, ainda que essas boas obras nada tenham a ver com a história do Um Anel. Ou seja, pura incoerência crítica e clara jogada de marketing.

Por fim, todos esperamos que a saga Filhos do Éden apresente o mesmo nível superior de qualidade.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SPOHR, Eduardo. A batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo. 5. ed. Campinas: Verus, 2010.