quarta-feira, 29 de junho de 2011

"EU VOU MOSTRAR PARA VOCÊ, E PARA VOCÊS TODOS QUE ESTÃO AQUI, E PARA TODOS QUE NOS ACOMPANHAM DO ASTRAL O QUE, EXATAMENTE, SÃO AS TREVAS"

As palavras que intitulam este post encontram-se na página 246 da primeira edição de Anjo: A Face do Mal (2004), de Nelson Magrini.

Há bastante tempo eu tenho pensado sobre qual livro escrever a primeira resenha literária aqui no meu blog, e depois de muito refletir eu cheguei à conclusão de que Anjo é uma boa escolha.

No dia primeiro de abril de 2005 eu estava passeando pelo shopping aqui em São Carlos e fui à Livraria Nobel, como sempre faço, para dar uma olhada nos lançamentos e nas coisas que os leitores normais estão lendo. Nada contra os leitores normais, é claro, mas TUDO contra o que eles lêem. As vitrines e as ilhas principais das livrarias estão cada vez piores e tem sido um sacrifício para mim procurar estar a par do que vem sendo publicado para o grande público em termos de Literatura. Infelizmente, eu tenho que fazer isso por ser um profissional da área e, como tal, é sempre necessário contextualizar as obras literárias numa aula, por exemplo, o que demanda trazê-las o mais próximo possível do leitor... que normalmente é um adolescente que se acha adulto e, na melhor das hipóteses, está lendo algo da Contra Cultura, da Geração Beat ou dos Românticos ou, na pior das hipóteses (e esta é a situação mais comum), está lendo o que há de mais execrável já escrito e publicado, atualmente: Crepúsculo, Paulo Coelho e coisas do gênero.

[Parênteses desnecessário] (É, minha gente... vida de professor de Literatura não é fácil, principalmente quando você tem que falar de Crepúsculo para o seu aluno se tocar quanto à atualidade de O Morro dos Ventos Uivantes... e esse aluno cursa o terceiro ano de Letras na UNESP...)

Enfim... aproveitando que eu já estava ali mesmo, decidi dar uma olhadinha na prateleira de Literatura Brasileira para ver se tinha algo de novo no fronte. Como sempre, me decepcionei. Mas, heroicamente, decidi dar uma olhada naqueles estantes que ficam mais abaixo, onde normalmente são colocados os livros das editoras que não têm contrato ou que não fazem lobby com a livraria (sim, isso existe... sim, isso é infame... sim, é assim que funciona o mercado). Foi aí que eu encontrei toda uma coleção, então recém lançada, da Editora Novo Século chamada “Novos Talentos da Literatura Brasileira”. Tudo o que eu conhecia até então dessa editora era o decepcionante e risível O Senhor da Chuva (2001), de... bem... André Vianco. Em suma, a primeira impressão já não foi das melhores.

Num primeiro momento eu ri. Talento e Literatura Brasileira são duas coisas que normalmente se excluem mutuamente, salvo raríssimas exceções... e quase tive um enfarto quando notei que a coleção toda era composta de livros de ficção fantástica, ou seja, o gênero mais pífio da Literatura nacional, que está há séculos-luz de produzir algo decente nesse tipo de ficção.
Dei uma olhada nos títulos só para me certificar de que eu realmente tinha perdido o meu tempo e ganhado dores nos joelhos por ter me abaixado pra ver as estantes inferiores. Decepcionante para dizer o mínimo, por isso nem vou me dar o trabalho de reproduzir alguns desses títulos aqui.

Eu já estava para me levantar e ir embora quando os espíritos sagrados de John Milton e William Blake, enviados certamente por Dante e Shakespeare, guiaram meus olhos, que recaíram sobre um título meio escondido entre os demais: Anjo: A Face do Mal. Milton e Blake também guiaram minha mão e eu peguei o livro. A primeira impressão não foi das melhores... a capa da primeira edição de Anjo, como boa parte das capas dessa coleção da Editora Novo Século, nada diz sobre o livro. Mas os espíritos poderosos que estavam me guiando não me permitiram desistir. Eu gostei da antítese presente no título: como pode a figura do anjo, um ser celestial, ser a face do mal? Algo já me interessou aí e eu fiz, então, o primeiro movimento que faço toda vez que pego um livro novo na mão: virá-lo de costas para ler a contra-capa. Diz a contra-capa da primeira edição de Anjo:

A partir de dois Princípios, a Ação e a Oposição, houve luz. Agora, infinitas eras após a Criação, o Princípio da Oposição, o indivisível, irá se dividir novamente.
Anjos, os que governam o Céu, querem impedir a divisão, pois, para eles, a Oposição são as Trevas Eternas, o inimigo máximo de Deus. Aos seus olhos, mesmo os Demônios, seus opostos, são toleráveis por serem originários da Ação, e vistos como partes da obra de Deus.
Por sua vez, os Demônios são a favor da divisão, até mesmo porque querem descobrir os segredos ali escondidos e utilizá-los na eterna luta contra os angelicais.
Em meio à tensão crescente, que ameaça eclodir em uma guerra que devastaria toda a existência, um ser observa, um ser único, sem igual, possuidor tanto da energia da Ação, quanto da Oposição.
Seu nome é Lúcifer.
Enquanto isso, na Terra, uma entidade misteriosa, incrivelmente poderosa, caça indiferentemente Anjos, Homens e Demônios, guiada apenas pelo seu propósito sombrio, uma entidade que só poderia ser descrita em pesadelos, a própria entropia encarnada.
É chegada, então, a hora de Lúcifer intervir. O futuro de tudo o que existe está em suas mãos. Se falhar, nada restará além de desolação e fria destruição.

 Capa da primeira edição de Anjo

Sim, meus amados leitores. Eu também fiquei boquiaberto, estarrecido, atônito diante dessas palavras.
Até hoje, relendo-as, elas ainda conseguem me espantar.

Sem perceber eu estava sentado numa das poltronas da livraria com o livro aberto à frente dos olhos, ávido e em êxtase. E sem perceber também eu estava perdendo o fôlego já no primeiro parágrafo do Prólogo:

Era o Tudo e o Nada, a Potencialidade de tudo existir. A Onipotência, a Onipresença e a Onisciência e, exatamente por isso, manifestou-se sob a forma de dois Princípios contrários. Um de Ação, que se multiplicaria ao infinito e daria existência e vida à criação; o outro de Oposição, que se contraporia à multiplicação, uno e indivisível. Mas, por serem iguais em potencial, nada aconteceu e ambos se anularam.
(MAGRINI, 2004, p. 9)

Em suma, num único parágrafo está contida toda a História da Criação, inclusive seu fim e seu eterno recomeço. Somente dois escritores foram capazes de lidar com um tema tão forte como esse e de uma forma tão impressionante e impactante: John Milton e William Blake, os dois maiores mestres da Literatura Inglesa depois de Shakespeare.
Não consegui mais parar de ler o livro, tendo devorado suas mais de 250 páginas naquele mesmo dia.

O enredo é muito bem articulado, ainda que prescindível de um certo detetive que aparece na história e introduz peripécias pela noite de São Paulo. As duas personagens principais, Lúcifer e Lucas, são de uma força e de uma profundidade estonteantes. Lúcifer, é claro, rouba a cena por completo com um charme que coloca as melhores personagens de Stephen King (se é que elas existem...) no chão sem a menor piedade. Nem Roland de Gilead, o impressionante herói do ciclo da Torre Negra [The Dark Tower, 1982 - 2012], é tão bem construído.

O Lúcifer de Magrini é um interessante suplemento ao Satã de Milton, personagem do Paraíso Perdido [Paradise Lost, 1667]: enquanto este é o Demônio como pintado em nossa cultura ocidental, aquele é um ser evoluído, divinal, que protege e busca a evolução da humanidade ao invés de torná-la vítima de sua vingança cega contra o Criador. Os dois, no entanto, transformam-se nas forças centrípetas e centrífugas dos multiversos ficcionais aos quais pertencem e tornam-se personagens de grande complexidade. O Lúcifer de Magrini é, sem dúvida, uma releitura contemporânea do Satã miltônico, e explicar exatamente como isso ocorre demandaria um ensaio acadêmico que eu ainda hei de escrever (mas não aqui). A única coisa que eu posso sussurrar para vocês é que o Lúcifer de Magrini, como o Satã de Milton, revela-se o verdadeiro Criador da humanidade, o Demiurgo, o Deus Pai. As implicações literárias, filosóficas e religiosas disso colocam em xeque as bases da Metafísica Ocidental, ou seja, as bases que fundaram e que ainda sustentam toda a nossa cultura.

Percebe, minha gente, que não estamos diante de um texto comum? Percebem que um tal tratamento de um tema complexo como este — ainda que tenha sido muito batido na ficção do século XIX —, da forma como é conduzido em Anjo, torna esse livro algo de extremo destaque em meio à ridícula ficção fantástica brasileira? Só Neil Gaiman, talvez o maior mestre da ficção fantástica na atualidade, é capaz de fazer frente a um enredo deste tipo (aqui eu estou pensando no irretocável American Gods, é claro...).

É evidente que, quando tive a oportunidade de estabelecer contato com Nelson, coloquei para ele algumas aproximações entre Anjo e os textos de Milton e Blake que me ocorreram na leitura que fiz desta que, sem sombra de dúvida, é até o momento sua obra-prima.
A reação e os comentários, mais do que esperados, foram de espanto e negação. Nelson disse-me que nunca leu Milton ou Blake e que baseou algumas das concepções que traz no seu tratamento do Bem e do Mal, por exemplo, no famosíssimo Dogma e Ritual da Alta Magia [Dogme et Rituel de la Haute Magie, 1854], de Éliphas Lévi. Como todos os pottermaníacos sabem (sim... eu sou um deles...), este é um dos livros que J. K. Rowling afirma tê-la inspirado para escrever a saga Harry Potter. Entretanto, antes que vocês me perguntem, à época em que Nelson mencionou-me o livro de Lévi esta referência de Rowling era ignorada.

A mesma reação de Nelson foi por mim observada quando, em um interessante tópico do Orkut sobre Anjo desenvolvido na comunidade do livro (eis o link específico desse tópico para quem se interessar: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=3606150&tid=5256635758122735228), eu comentei sobre a igualdade existente na raiz dos nomes das duas personagens principais da obra. Notem que o radical “Luc”, transformação da palavra latina “lux” (“luz”), ocorre tanto no nome Lúcifer quanto no nome Lucas. Isso gera uma identificação inexorável entre o divinal Lúcifer e o humano Lucas, que na história é o guia do grande Serafim em sua busca para conter o “Anjo” do título, um “Anjo” que, sem dúvida, não é um anjo e nem é concebível por quaisquer definições de que dispomos no momento. Com esse movimento quase imperceptível presente nos nomes dessas duas personagens, e talvez sem o perceber e sem o querer, Nelson simplesmente coloca no mesmo patamar o divino e o humano, Lúcifer e Lucas, o Criador e a Criatura. Isso é uma característica básica das obras de William Blake e de boa parte dos poetas românticos ingleses.
Nelson, no entanto, afirma que foi mera coincidência e que nomeia suas personagens sem refletir sobre seus nomes: eles simplesmente lhe ocorrem e ele as nomeia. Quem sou eu para contradizer o autor da obra, mas a experiência com crítica literária me revelou que isso pode ser um interessante jogo que é típico dos grandes autores de Literatura, o jogo embutido nas palavras do nosso amado Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”.

Minha amiga Cher Lopes, do Literando, que também foi minha aluna de graduação e minha orientanda, escreveu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre Anjo. O trabalho se chama "Configurações do estranho e do duplo em Anjo: a Face do Mal, de Nelson Magrini" (2009). Nele, Cher analisou justamente a identificação entre Lúcifer e Lucas e fez aproximações incríveis dessa obra de Nelson com obras de Milton e Blake. O capítulo sobre Lúcifer é simplesmente magistral. Infelizmente, esse TCC não está publicado, mas eu tenho certeza que se vocês entrarem em contato com a autora ela terá o maior prazer em falar tudo sobre ele e até enviá-lo para vocês.  

Independentemente disso ou de qualquer coisa, Anjo é uma obra-prima, uma das pouquíssimas leituras de Literatura fantástica nacional que eu recomendo de verdade. E o livro já está na segunda edição!

 Capa da segunda edição de Anjo

Para finalizar, eu gostaria de convidar vocês a lerem e compararem os três trechos abaixo reproduzidos. O primeiro é do Paraíso Perdido, de Milton; o segundo é do Matrimônio do Céu e do Inferno [The Marriage of Heaven and Hell, 1790 - 1793], de William Blake; e o terceiro é de Anjo: a Face do Mal. Vocês enxergam alguma aproximação entre esses três textos tão distantes no tempo e no espaço?

DIVIRTAM-SE!

* * *

Trecho 1: extraído do Canto 1 do Paraíso Perdido, de Milton.
O arqu'inimigo [Satã] prontamente o atalha [a Belzebu]:
Degenerado querubim! Faz pejo
Não ter constância na paciência e lidas.
Podes seguro estar que jamais, nunca,
Fazer um bem qualquer nos é possível;
Mas que sempre será da essência nossa
Fazer todos os males que atormentam
A alta vontade do Opressor ovante [Deus].
Se acaso intenta a Providência sua
Algum bem extrair dos males nossos,
Busquemos perverter-lhe o fim proposto
Fazendo de tal bem fonte de males.
[...]
Reinar no Inferno preferir nos cumpre
À vileza de ser no Céu escravos.
(MILTON, 2003, p. 31 - 32 e 36)

* * *

Trecho 2: extraído da quinta placa do Matrimônio do Céu e do Inferno, de Blake.

A história está escrita no Paraíso Perdido, & o Governante ou Razão é chamado Messias.
E o Arcanjo original ou possuidor do comando da hoste celeste é chamado Demônio ou Satã, e seus filhos são chamados Pecado & Morte.
Mas no Livro de Jó, o Messias de Milton é chamado Satã.
Pois essa história foi adotada por ambas as partes.
De fato pareceu à Razão que o Desejo fora jogado fora, mas o relato do Demônio diz que o Messias caiu e formou um céu com o que ele roubou do Abismo.
(BLAKE, 2004, p. 15)

* * *

Trecho 3: extraído do capítulo 8 de Anjo: a Face do Mal, de Magrini.
— Trevas? — perguntou Lúcifer, arcando as sobrancelhas. — O que você sabe sobre elas?
— As Trevas são o Mal, o Mal verdadeiro, e do qual parte de você pertence. [...].
— [...] não se preocupe — continuou Lúcifer sem dar chance de Mikael lhe interromper —, eu vou mostra para você, e para vocês todos que estão aqui, e para todos que nos acompanham do Astral o que, exatamente, são as Trevas. [...].
A intensidade da luz era incomensurável. [...]. A luz penetrava em todos os cantos, todos os lugares. Fechar os olhos não adiantava, pois a luz penetrava através das pálpebras.
— Diga-me, Mikael, o que você está vendo?
— Não estou vendo nada! — gritou Mikael, desesperado.
A luz aumentou ainda mais.
— Exatamente — gritou Lúcifer —, você não vê nada, não sabe o que há à frente, ou atrás, não vê o futuro, não vê o caminho. Que esperança pode existir, assim? [...].
— Eu sou o Portador da Luz — gritou, sendo ouvido em todo o mundo espiritual. — Eu trago a Luz em mim, e não as Trevas. Você tinha razão quando descreveu as Trevas, Mikael, você e todos os Celestiais. Elas são algo no qual não se pode ver nada. Você vê alguma coisa agora, Mikael? [...].
— Agora todos vocês sabem. As Trevas são as luzes mais intensas do universo [...].
(MAGRINI, 2004, p. 245 - 250)

* * *


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLAKE, William. Matrimônio do Céu e do Inferno. São Paulo: Madras, 2004.
MAGRINI, Nelson. Anjo: a Face do Mal. Osasco (SP): Novo Século, 2004.
MILTON, John. Paraíso Perdido. São Paulo: Martin Claret, 2003.

* * *

quarta-feira, 1 de junho de 2011

E ELE VIROU DOUTOR...

As informações abaixo constam em arquivos secretos do Pentágono.

O responsável pela divulgação dessas informações neste veículo de comunicação foi enviado para Guantánamo.

“Bang a drum for the sinners”, como diria Jon Bon Jovi, provavelmente tentando uma releitura mau e porcamente falhada de “Drum Taps”, de Walt Whitman...

No dia 31 de maio de 2011, por volta de 10h da manhã, um grupo de cinco pessoas se reuniu num local afastado e isolado, dentro do mítico campus da UNESP – Araraquara, com a presença de uma platéia muito seleta, para discutir questões sobre um texto chamado “Segredos do Sótão: Feminismo e Desconstrução na obra de Kate Chopin”.

O manuscrito de quatrocentas páginas de "Segredos do Sótão".
[A foto foi feita pela CIA em missão secreta em Dubai, possivelmente no ano passado]

O texto, um calhamaço de quatrocentas páginas, possivelmente um apócrifo transliterado ao português contemporâneo a partir de códices antigos e medievais escritos em línguas mortas, as línguas usadas nas folhas da Sibila, foi “escrito” por um certo Aparecido Donizete Rossi, doravante apenas Cido – PhD-to-be, sob a pretensa desculpa de se tratar de uma tese de doutorado sobre Feminismo, Desconstrução e a obra de uma tal Kate Chopin, um pseudônimo feminino usado por uma mulher do final do século XIX.
O que seria Feminismo e o que seria Desconstrução permanece um mistério tão grande quanto o que significa “γνῶθι σεαυτόν”.
O que se sabe é que o grupo de cinco pessoas que teve acesso a esse texto, um grupo que decidiu se auto-intitular simplesmente como a Banca, resolveu tecer considerações sobre as barbaridades impublicáveis ali transliteradas diretamente àquele que se proclamou “autor”.
Por questões de segurança, abaixo seguem os nomes fictícios dessas cinco pessoas.

* ALCIDES – conhecido como o Orientador, um seguidor de Blake e Derrida, ou seja, um avatar de Vishnu. Foi ele quem conclamou a Banca para que esta desconstruísse o texto de Cido – PhD-to-be. O que poucos sabem é que Alcides foi o mentor de Cido – PhD-to-be, quem lhe abriu os caminhos de todos os insidiosos conhecimentos que lhe permitiram transcrever ao português contemporâneo as línguas mortas, truncadas e ininteligíveis usadas em alfarrábios tão antigos quanto o Ocidente.

* RITA – o primeiro membro da Banca. Uma mulher com um poder escritural tão grande a ponto de ser capaz de transformar universos em palavras sem ser uma Poetisa.

* MARIA CONCEIÇÃO – o segundo membro da Banca. Uma mulher que faz perguntas extremamente inquietantes no tom de quem dá conselhos para a vida.

* ANA MARIA – o terceiro membro da Banca. Uma mulher com uma habilidade rara: saber provocar a ponto de enlouquecer o subjétil.

* MARIA CLARA – o quarto membro da Banca. Uma mulher que lê com os olhos da Poesia. Uma mulher que deslê, portanto.

Havia ainda, como dito, uma platéia seleta composta de doutores, mestres e pessoas que se apresentavam como “leigas”, mas que nada tinham de leigas. Todos eles eram seres enviados de outros planos da existência para verificar como os impasses instaurados pelo texto transliterado de Cido – PhD-to-be se desenvolveriam.
Não é preciso dizer, pelo breve resumo que segue sobre o que cada membro da Banca disse a Cido – PhD-to-be e sobre o que ele tentou ponderar, que os seres interplanares que compunham a platéia ficaram ora absurdados, ora estupefatos, ainda que certamente entretecidos numa malha textual indecidível.

ALCIDES
[Colocando seu fuzil AR-15 preferido sobre a mesa]
— Você tem alguma coisa a dizer, Cido – PhD-to-be?

CIDO – PhD-to-be
[Também colocando seu fuzil AR-15 preferido sobre a mesa]
— Sim. Eu quero o divórcio.

* * *

RITA
— Você é injusto em sua crítica à Elaine Showalter, ainda que você possibilite “inter-sex(text)ualities” perigosas naquilo que transliterou.

CIDO – PhD-to-be
— Eu agradeço pelo imenso elogio sobre “meu” texto possibilitar “inter-sex(text)ualities” perigosas. Não sei o que dizer sobre tamanha generosidade.
Concordo que pesei a mão com relação à Showalter, mas não retiro uma palavra do que escrevi já que, ainda em 2009, ela insiste em não rever seu conceito de “autoridade da experiência”.

PLATÉIA
— WOW!

BANCA
 [Muda e impassível]

RITA
— O hymen desliza.

CIDO – PhD-to-be
— Sim. Sem dúvida o hymen desliza.

RITA e CIDO – PhD-to-be
[Um riso franco e cúmplice toma seus rostos]

* * *

MARIA CONCEIÇÃO
— Sendo o Patriarcado um construto histórico, e o unheimlich um construto do imaginário, como você vê uma possibilidade de aproximação entre essas duas coisas?

CIDO – PhD-to-be
— Sim. Uma vez que o Patriarcado é um construto histórico o próprio Freud, um dos inventores do Patriarcado, detecta um “Mal-estar na civilização”, um mal-estar que incomoda esse Patriarcado. Esse “mal-estar” é o Feminino, é aquilo que deve ser silenciado, rebaixado, excluído. O mal-estar no Patriarcado, ou o Feminino, é o unheimlich, ou seja, algo que não tem nada de imaginário.

PLATÉIA
[Prende a respiração]

MARIA CONCEIÇÃO
 — Mas Freud...

CIDO – PhD-to-be
 — Freud nada explica. Ele apenas sugere.

MARIA CONCEIÇÃO
[Impassível, meneia a cabeça afirmativamente em sinal de aprovação]

* * *

ANA MARIA
— O que se tem ao final de “Désirée’s Baby” é um suicídio.

CIDO – PhD-to-be
— Não. O que se tem ao final de “Désirée’s Baby” é a encenação de um suicídio que desemboca no mito (de Lilith – Medéia, no caso).

ANA MARIA
— Discordo.

CIDO – PhD-to-be
— Eu sei. Pelo que sou muito grato.

ANA MARIA
— Você gosta de ser provocado.

CIDO – PhD-to-be
— Provocar é pedir para ser provocado, não é?

ANA MARIA
— Com certeza.

CIDO – PhD-to-be
— Então você é a pessoa certa que está me provocando.

Alguém da PLATÉIA
— Típico dele.

BANCA
[Risos]

* * *

MARIA CLARA
— Você precisava ter se detido e analisado a janela em “The Story of an Hour”!!! Há poesia ali!!!

CIDO – PhD-to-be
— Concordo em gênero, número e grau.

BANCA
[Uma balbúrdia de felicidade entre os cinco, da qual também participa Cido – PhD-to-be]

PLATÉIA
[Caras de “do-que-é-que-eles-estão-falando?”]

* * *

Depois de confabular e elucubrar durante horas a fio e no mais absoluto segredo e isolamento, a Banca decide chamar novamente Cido – PhD-to-be e a platéia para dentro daquele “território do selvagem”, como diria Elaine Showalter. Eles tinham chegado a um veredicto.

ALCIDES
— A Banca chegou a um veredicto. Habemus doctorum.

[Sobe a fumaça branca papal que até então pairava sobre os copinhos de café que a Banca bebera enquanto elucubrava]

ALCIDES
— A partir deste instante você é um Doutor.

BANCA
[Joga sobre Cido – PhD as cinco cópias de quatrocentas páginas de sua transliteração]

ALCIDES
[Assumindo o tom de John Constantine depois de dar um soco no anjo Gabriel ao final do filme Constantine]
— Isto se chama "peso do conhecimento". Get used to it e vá, a partir de agora, ser gauche na vida.

[Cortinas]

* * *

Gostaria de deixar expresso aqui meus sinceros agradecimentos ao meu Orientador e à Banca de digníssimas autoridades que ontem, 31/05/2011, reuniu-se para discutir minha tese de doutorado e que, depois de ter lido e ouvido, num belíssimo gesto de hospitalidade, concluiu que eu deveria receber o título de Doutor em Estudos Literários.
Aproveito também para deixar meus agradecimentos a todos aqueles e aquelas que, de uma forma ou de outra, me acompanharam nesta caminhada.

 [Da esquerda para a direita] Prof.ª Dra. Maria Clara Bonetti Paro (UNESP - FCL-Ar), Prof.ª Dra. Ana Maria Domingues de Oliveira (UNESP - Assis), Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos (UNESP - FCL-Ar), Prof.ª Dra. Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) e Prof.ª Dra. Maria Conceição Monteiro (UERJ).

Eu.

Membros da Platéia.

 Membros da Platéia.

 Membros da Platéia.

O momento derradeiro, resultado de toda uma vida...



(Photos and video by Cairo Braga)