domingo, 8 de julho de 2012

GAGA HEIGHTS

No primeiro semestre do ano passado eu estava ainda às voltas com preocupações referentes à conclusão da escrita da minha tese e do meu doutorado. Como se não bastasse, eu também estava com aulas de Literatura Inglesa para ministrar na UNESP - Araraquara e na UNICASTELO - Descalvado. Por conta de tantas preocupações causadas por uma pós-graduação e dois empregos, minha mente estava muito atribulada para sentar e preparar uma aula decentemente como hoje tenho tempo de fazer.

É nesses momentos de adversidades que entra o "jogo de cintura", também conhecido como "improviso", por parte do professor. Como eu mesmo ensino para os meus alunos, se você não sabe lidar com o inesperado e não sabe improvisar você não serve para ser professor, pois aquela aulinha quadradinha e bonitinha previamente preparada nunca será dada: aula preparada em plano de aula NUNCA vai sair do papel simplesmente por que não existe como planejar uma aula. Uma aula só poderia de fato ser planejada se fosse possível saber previamente o que vai acontecer na situação de ensino e como estão os alunos em termos emocionais. Como quem consegue fazer isso são apenas seres que têm o poder de prever o futuro, portadores da Espada Justiceira que sabem usar a Visão Além do Alcance, a professora Sibila Trelawney, Usutu e Isaac Mendez (de Heroes), deuses, magos, planinautas etc., você já notou que nem eu, nem você e nem ninguém vai conseguir planejar uma aula. Além disso, como eu também sempre digo para os meus alunos e para os meus amigos pedagogos: Didática é para os fracos. Ou você nasce com o Dom de ser didático, ou você pode desistir de sê-lo, pois Didática não se ensina e nem se aprende (sorry, teóricos da Pedagogia, mas vocês estão, mais uma vez, se enganando, enganando e sendo enganados neste ponto...). Didática é um fenômeno de interação absolutamente imprevisível, vago, momentâneo e evanescente que só funcionada em dado momento, em dada situação e com dados indivíduos, tendo que ser permanentemente renovado, remodelado e adaptado. Por isso, meu filho e minha filha, Didática é algo que a gente já nasce sabendo.

Mas porque eu estou dizendo tudo isso pra vocês, que a estas alturas já estão achando que eu vou encher linguiça? Por que hoje eu vou fazer algo prosaico: vou contar a história de um dos meus improvisos como professor.
Não se trata de qualquer improviso, nem de uma cena engraçada, nem de alguma cretinice, que é com que normalmente os improvisos se parecem. Trata-se de um improviso tão inusitado e que acabou fazendo tanto sentido que me deixou assombrado e em dúvida se se tratou mesmo de um improviso ou se foi um ato de interpretação até certo ponto inconsciente diante de duas coisas aparentemente incoerentes. Fato é, no entanto, que a articulação da ideia deste improviso me levou, e ainda me leva, a considerar a possibilidade de pesquisar academicamente a relação entre as duas coisas nele envolvidas.

Chega de mistérios e rodeios e vamos ao que interessa.

No primeiro semestre de 2011, assim como neste primeiro semestre de 2012, estava sob minha responsabilidade uma disciplina de Literatura Inglesa em que se estuda o romance do século XIX. O romance que eu escolhi para analisar com os alunos foi, é claro, O Morro dos Ventos Uivantes [Wuthering Heights, 1847], de Emily Brontë, o mesmo que foi analisado neste ano.
A primeira questão que me coloquei foi: como abordar este romance com os alunos?
Trata-se de uma obra tão rica, tão complexa, tão cheia de possibilidades, que fica difícil pensar em algo que, ao mesmo tempo, não seja tão introdutório e nem tão avançado para um aluno de graduação que já viveu metade de sua vida no século XXI, um século que trocou a profundidade pela superficialidade. O Morro dos Ventos Uivantes não permite uma abordagem superficial: o próprio texto, da forma com que foi escrito, resiste a isso; mas também um mergulho muito profundo em seus meandros, como os que costumo fazer em minhas leituras acadêmicas, pode ser algo traumático e indigerível a um graduando que não tenha as experiências corretas de leitura (e este é o caso da maioria esmagadora deles).
Foi diante destas questões que eu me fiz uma pergunta crítica: Cido, porque você foi escolher um texto tão perigoso? Ao que meu lado aventureiro e investigador, uma mistura de Indiana Jones com Mestre Yoda, respondeu que a escolha estava certa, visto que se trata de uma obra que pode mudar vidas.
Como abordá-la, então? Era a pergunta que me incomodava. Possibilidades foram surgindo e sendo descartadas na minha mente:

a) uma leitura pós-estruturalista.
OK. Perfeito. É, certamente, a abordagem teórica mais adequada, mas os Departamentos de Literatura de todas as universidades do estado de São Paulo são muito conservadores e não deixam chegar aos alunos os conhecimentos necessários para eles minimamente entenderem uma leitura pós-estruturalista de uma obra literária. Dificilmente um aluno de graduação de terceiro ou quarto ano leu Freud, Marx, Barthes, Foucault, as Feministas e/ou os Desconstrucionistas. Possibilidade descartada até segunda ordem.

b) uma leitura comparatista.
Incrível! Ideia maravilhosa! Há toda uma tradição de escritores e escritoras que foram influenciados por O Morro dos Ventos Uivantes como Kate Chopin, Virginia Woolf, Edith Wharton, Charles Dickens, Henry James etc. Mas que aluno de graduação leu esses caras? Para piorar, eis que eu descubro que os protagonistas da asquerosa série Crepúsculo estão lendo e tentando transportar para suas vidas a história de Catherine e Heathcliff!!! E esta descoberta deu-se da pior e mais traumática maneira possível: primeiro, fui à livraria e me deparei, na entrada, com uma pilha de edições da obra-prima de Emily Brontë cuja capa dizia em letras garrafais "a obra que deu origem à série Crepúsculo". Desnecessário dizer que quase tive um troço diante de uma barbaridade dessas. Fiquei ali diante da pilha de exemplares, paralisado por vários minutos, em estado de absoluto horror ante aquelas palavras abomináveis. Como se não bastasse, no primeiro dia de aula de 2011, quando anunciei que iríamos estudar O Morro dos Ventos Uivantes, uma aluna vira para mim, em estado de êxtase epifânico, na frente de toda a sala e diz que estava muito feliz e ansiosa com isso porque ela estava lendo Crepúsculo e enfim poderia conhecer melhor a obra sobre a qual Edward e Bella tanto falavam. Foi o absurdo, o surreal da situação que não me permitiu colocar a infeliz da aluna para fora da minha aula para sempre. Isso não aconteceu neste ano, graças a Deus!
Como vocês podem notar, sem a menor chance de abordar o romance nesta perspectiva.

c) uma leitura estruturalista, new critic, formalista etc.
Clássicas demais. Ultrapassadas demais. Reducionistas demais. O básico do básico: o feijão com arroz da Teoria Literária. É isso que os alunos basicamente aprendem nesta disciplina nas universidades do estado de São Paulo, e falo por experiências própria, visto que foi justamente isso que aprendi em Teoria Literária: que há 3 tipos da narrador (autodiegético, homodiegético e heterodiegético), 2 tipos de personagens (planas e redondas), 3 tipos de espaço (interno, externo e psicológico), que a interpretação do texto é imanente ao texto etc. O que ninguém me ensinou, e ninguém ensina mesmo, é como articular tudo isso para extrair uma possibilidade de interpretação para um objeto artístico que é contrário a quaisquer tipos de classificações, como é o caso do texto literário.
Fora de cogitação estas abordagens. Elas reduziriam a grandeza de O Morro dos Ventos Uivantes.

d) uma leitura psicanalítica, mas não-ortodoxa.
Esta foi a única possibilidade adequada que restou. A Psicanálise é algo praticamente de domínio público, uma tradição interpretativa constituída e muito produtiva para interpretar literatura. O Morro dos Ventos Uivantes é uma aula prática de Psicanálise, logo não poderia haver abordagem melhor. Junte-se a isso alguns toques sutis e imperceptíveis de Desconstrução e temos uma abordagem rica de significados para os alunos.
Pronto! Decidido: uma leitura psicanalítica não-ortodoxa de linha freudiana e com pequenos toques imperceptíveis de Jacques Derrida para a obra máxima de Emily Brontë.

Eu comecei, então, a refletir como faria a abordagem, quais termos utilizaria, quais conceitos, quais cenas e aspectos do romance etc. Enfim, comecei a montar as aulas em minha mente e, um belo dia à noite, ouvindo música e pensando no Nada (não há nada mais maravilhoso do que pensar no Nada! É como pensar em tudo ao mesmo tempo...) enquanto dirigia de volta de Descalvado para São Carlos depois das aulas, eis que uma ideia estranha insinuou-se insidiosamente por entre as sinapses dos meus neurônios perturbados pela indecidibilidade do indecidível. Aquela ideia foi contaminando a minha mente de tal forma que ela passou de uma abstração para um evento no mundo físico, ainda que um evento sobrenatural: um sussurro de um nome (Lady Gaga), um sussurro de um título de música ("Bad Romance"), um movimento repentino com o dedo no rádio do carro para ouvir o som e prestar atenção na letra.
Em segundos o espaço diminuto e recluso do carro, cercado pela escuridão e pelo silêncio sepulcral de uma noite sem luar, estava tomado pelos acordes poderosos de "Bad Romance", de Lady Gaga, uma das músicas mais conhecidas, importantes e inovadoras desta que é o atual fenômeno do Pop, o que aconteceu de mais diferenciado na música pop dos últimos 20 anos, ainda que Madonna a tenha chamado, não sem uma pontinha de inveja, "reductive".


Eis a letra da música:

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

I want your ugly
I want your disease
I want your everything
As long as it's free
I want your love
Love, love, love I want your love

I want your drama
The touch of your hand
I want your leather-studded kiss in the sand
I want your love
Love, love, love I want your love
(Love, love, love I want your love)

You know that I want you
And you know that I need you
I want it bad, your bad romance

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
(Oh-oh-oh--oh-oooh!)
I want your love and
All your lover's revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

I want your horror
I want your design
'Cause you're a criminal
As long as your mine
I want your love
(Love, love, love I want your love)

I want your psycho
Your vertigo stick
Want you in my rear window
Baby your sick
I want your love
Love, love, love
I want your love
(Love, love, love I want your love)

You know that I want you
('Cause I'm a freak bitch baby!)
And you know that I need you
I want a bad, bad romance

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
(Oh-oh-oh-oh-oooh!)
I want your love and
All your lover's revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Caught in a bad romance

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk fashion baby
Work it
Move that bitch c-razy

Walk, walk passion baby
Work it
I'm a freak bitch, baby

I want your love
And I want your revenge
I want your love
I don't wanna be friends

J'veux ton amour
Et je veux ton revanche
J'veux ton amour
I don't wanna be friends
Oh-oh-oh-oh-oooh!
I don't wanna be friends
(Caught in a bad romance)
I don't wanna be friends
Oh-oh-oh-oh-oooh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)
Want your bad romance!

I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
Oh-oh-oh-oh-oooh!
I want your love and
All your lovers' revenge
You and me could write a bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)
Want your bad romance

Oh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh-oooh-oh-oh-oh!
Want your bad romance
(Caught in a bad romance)

Rah-rah-ah-ah-ah-ah!
Rama-ramama-ah
GaGa-ooh-la-la!
Want your bad romance

Vários pontos me chamaram a atenção nesta letra, pontos estes que parecem guardar uma forte ligação com o enredo de O Morro dos Ventos Uivantes: "caught in a bad romance" ("presa em uma história de amor do mal"), "I want your love" ("eu quero o seu amor"), "I want your drama" ("eu quero o seu drama"), "I want your revenge" ("eu quero a sua vingança"), "You and me could write a bad romance" ("você e eu poderíamos escrever uma história de amor do mal"), "I want your love and / All your lover's revenge" ("eu quero o seu amor e / toda a sua vingança de amante"), "I want your psycho" ("eu quero a sua insanidade"), "I don't wanna be friends" ("eu não quero que sejamos amigos").

O que é o enredo de O Morro dos Ventos Uivantes senão um "bad romance" ("uma história de amor ruim" ou, mais adequadamente, "uma história de amor do mal")? O que buscam as personagens principais, Catherine Earnshaw e Heathcliff, senão o amor? Essa busca é dramática, resulta em vingança, é insana tanto por parte de Catherine ao voltar como fantasma de si própria quanto por parte de Heathcliff com sua vingança. Apesar dos dois protagonistas serem, inicialmente, amigos, Heathcliff, a grande personagem satânica da obra, não quer apenas amizade mas sim casar-se com Catherine.
As relações amor/ódio e amor/vingança são elevadas a tal ponto que suas barreiras se amainam e os membros desses pares se mesclam, se interpenetram e não mais se excluem mutuamente. Emerge daí uma história de amor do mal, uma história de amor entre seres do mal que vai além da Vida e da Morte e além do próprio Bem e do próprio Mal. Sim, Catherine e Heathcliff são seres malignos consigo próprios e com os outros que os rodeiam. No entanto, nenhum de nós, leitores, consegue sentir algo de ruim por eles: as duas personagens foram vítimas inexoráveis de circunstâncias não propícias para que seu amor pudesse ser vivenciado enquanto eram habitantes deste mundo que chamamos erroneamente de real. Somente no Além, onde não há amarras ou impedimentos de quaisquer tipos, onde não há preconceitos e normas sociais espúrias, eles conseguiram se encontrar em paz e vivenciar o que sentiam um pelo outro.
Eis uma das minhas passagens preferidas da obra:

an odd thing happened to me about a month ago. I was going to the Grange one evening — a dark evening, threatening thunder — and, just at the turn of the Heights, I encountered a little boy with a sheep and two lambs before him; he was crying terribly; and I supposed the lambs were skittish, and would not be guided.
‘What is the matter, my little man?’ I asked.
‘There’s Heathcliff and a woman yonder, under t’ nab,’ he blubbered, ‘un’ I darnut pass ‘em.’
I saw nothing; but neither the sheep nor he would go on so I bid him take the road lower down. He probably raised the phantoms from thinking, as he traversed the moors alone, on the nonsense he had heard his parents and companions repeat. Yet, still, I don’t like being out in the dark now; and I don’t like being left by myself in this grim house: I cannot help it; I shall be glad when they leave it, and shift to the Grange.
(BRONTË, 2003, p. 282)

Romântico? Mexicano? Shakespeareano?
Sim, todos estes adjetivos se aplicam a O Morro dos Ventos Uivantes. Mas uma história de amor do mal, a la Gaga, é tudo isso: romântica, mexicana e shakespeareana. Pós-moderna, em outras palavras. Pop. Pois tudo que é Pop, desde que seja de qualidade, se torna clássico e permanece através dos tempos, assim como os românticos, o dramalhão mexicano, as peças de Shakespeare e a obra-prima de Emily Brontë. E sim, eu estou sugerindo que Lady Gaga tende a permanecer através dos tempos pelo simples motivo de que o que ela faz enquanto artista é bom.
Tão bom quanto Shakespeare, Cido Rossi, seu louco, desvairado?!!!
Sim, tão bom quanto o Supremo Shakespeare e a Suprema Emily Brontë. Como eu sempre digo, Shakespeare era a Lady Gaga do século XVI: ele fazia Londres vir a baixo com o poder vibrante de suas obras popularíssimas entre nobres e plebeus; e Emily Brontë foi a Lady Gaga do século XIX: ela era mais lida que o próprio Shakespeare naquela época.


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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BRONTË, Emily. Wuthering Heights. Hazleton: The Pennsylvania State University, 2003.