A finalidade deste blog não é discussão política ou de assuntos que fujam à literatura e ao cinema.
Contudo, um colega de trabalho enviou-me hoje uma matéria da Folha de São Paulo que me deixou indignado e, sendo quem sou, na obrigação de me manifestar.
A reportagem da Folha, intitulada "Universidade paga", se encontra neste link: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2014/06/1478158-universidade-paga.shtml
Minha manifestação:
O que sabe um físico-economista sobre Educação?
Nada, como se pode notar pelo texto mecânico apresentado.
Eu poderia simplesmente sugerir ao colunista ater-se aos seus átomos e números
e deixar o assunto àqueles que o conhecem e pesquisam, e isso já estaria de bom tamanho. Mas meu espírito de educador me impede de assim fazê-lo. Então:
A questão, senhor físico-economista, é muito mais complexa
do que prega sua vã (e equivocada) filosofia. O Conhecimento, produzido pela pesquisa
universitária pública, com recursos públicos e disponibilizado gratuitamente àqueles que o procuram, é e sempre foi, por natureza, um BEM PÚBLICO.
Se os conhecimentos que Einstein e
outros físicos importantes produziram não fossem públicos, o senhor certamente não
seria um doutor em Física e não teria o trabalho que tem. Se os conhecimentos
que escritores produziram não fossem públicos, eu não seria um doutor em
Literatura.
Universidades e instituições privadas em geral, salvo
raríssimas exceções, não produzem Conhecimento; elas apenas compram e vendem o Conhecimento que foi produzido por instituições públicas (eu não estou falando aqui dos profissionais formados por instituições públicas ou privadas, mas sim da massa de conhecimento produzido por todos aqueles que profissionais das universidades públicas nesse país). Sim, é isso mesmo: universidades e instituições privadas apropriam-se de produção científica de alto padrão, produzida com recursos públicos e para o público, e a vendem como se fosse uma mercadoria. Que nome devemos dar a essa prática? Troca de Conhecimento? Apropriação de Conhecimento? Tráfico de Conhecimento? Ou roubo de patrimônio público?
E será que pessoas como eu, docentes e pesquisadores de universidades públicas, são seres ingênuos que ficam produzindo Conhecimento avançado com dinheiro público para que ele seja roubado pela iniciativa privada? Nós não somos ingênuos, eu lhe garanto, senhor físico-economista. Nós sabemos muito bem o que se tem feito com os conhecimentos que produzimos, e sabemos muito bem como impedir que eles não fiquem restritos às mãos de seres e instituições que querem monopolizá-los.
Privatizar os veículos produtores de Conhecimento, meu caro, significa perder a soberania nacional, significa privatizar o próprio país, pois é graças
ao Conhecimento que eu e tantos outros colegas professores e pesquisadores de
universidades públicas produzem, em situações profissionais precárias, que o
país pode crescer e se destacar, que as pessoas podem ter acesso irrestrito a
qualquer forma de Conhecimento, que o país tem recebido reconhecimento e honrarias internacionais, que a senhora presidenta sabe o que e como
falar diante da ONU e de outros presidente, dentre diversos outros feitos que não existiam ou não eram possíveis até bem pouco tempo atrás.
Nós, professores e pesquisadores de universidades públicas brasileiras, trabalhamos para o país, e não para interesses econômicos particulares. Mesmo no caso das universidades públicas do estado de São Paulo, é preciso que fique claro que os Conhecimentos que produzimos pertencem ao país, e não exclusivamente ao estado de São Paulo e nem aos seus governantes ou suas indústrias.
Como só posso falar com segurança sobre o que conheço, atenho-me à situação do curso de Letras, onde atuo. O aluno e o pesquisador que eu e meus colegas de universidade pública formamos nesse campo do Conhecimento, seja na graduação, seja na pós-graduação, vai atuar principalmente nos sistemas
de Educação desse país. É esse aluno-pesquisador que vai enfrentar situações
ainda mais precárias para levar alguma forma de conhecimento, alguma possibilidade de mudança de vida, àqueles que são
desprovidos de absolutamente tudo. Também é esse aluno-pesquisador que eu e meus colegas formamos
que, por outro lado, vai vender seus conhecimentos nas universidades
particulares, cuja política é não contratar professores que não sejam formados
em universidades públicas (por que será?).
Note, senhor físico-economista, que não há como privatizar o ensino superior sem privatizar o ensino fundamental e médio, uma vez que o ensino fundamental e médio é provido pelo ensino superior. Sua lógica é falha, o que é algo bastante estranho para quem pertence às assim chamadas "Ciências Exatas".
O ensino universitário não é e não pode ser um bem de
natureza privada, pois isso implicaria em privatizar o Conhecimento que é
produzido nas universidades e oferecido gratuitamente. Ao invés de estar nas
mãos dos governos, que têm o dever constitucional de disponibilizá-lo ao povo (e cabe ao povo exigir que o façam),
o Conhecimento estaria nas mãos de uns poucos conglomerados que o reteriam para
uso próprio e particular, exatamente o que acontece no sistema educacional
superior norte-americano mencionado pelo senhor.
Obviamente, é isso mesmo que os conglomerados privados querem: acesso exclusivo a um bem público de alto valor agregado. Essa é a lei da oferta e da procura, chave do Capitalismo que rege o mundo atual. Esse também é o cerne do Poder, pois quem detém o Conhecimento detém, necessariamente, todos os mecanismos de poder.
É muito fácil dispor de exclusividade e poder às custas do trabalho de professores e pesquisadores universitários que dedicam suas vidas à produção do Conhecimento. Também é muito fácil impor que o povo pague por isso.
Eu quero ver a coisa funcionar na prática, pois eu lhe garanto que muitos professores-pesquisadores como eu se negarão terminantemente a produzir Conhecimento para uns poucos eleitos, ou boicotarão os Conhecimentos produzidos para estes. Além disso, o próprio povo, a voz sempre mais forte, em algum momento reagirá, pois esse país nunca teve a tradição de acesso pago ao Conhecimento, como ocorre nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. O acesso pago ao Conhecimento, como mostra a experiência desses países, é excludente e deixa a maior parte da população vulnerável, além de se tornar, a longo prazo, um problema econômico crônico e deletério ao país.
Não se engane, senhor físico-economista, e nem engane os seus leitores: americanos e europeus há muito vêm estudar aqui no Brasil, ainda que a imprensa, sempre marrom, só mostre o trânsito contrário; e países como a Inglaterra estão paulatinamente abandonando o modelo do acesso pago ao ensino superior porque isso tem impactado negativamente na economia do país. Os Estados Unidos, ao contrário do que também mostra a imprensa marrom (eu morei lá, meu caro, e vi isso in loco), há muito está em crise em seus sistemas de Educação, Saúde e Habitação, o que tem se revelado um problema de proporções épicas para uma economia que se pretende a mais poderosa do planeta, especialmente porque a China, onde o acesso à Educação em qualquer nível é público e gratuito e universidades particulares ou produção particular de conhecido não são vistas com bons olhos, vem dominando cada vez mais o cenário econômico internacional.
Mais uma vez, senhor físico-economista, vemos alguém como o senhor que, a princípio, deveria ter clareza em relação ao mundo, ludibriar-se pelos falsos encantos de modelos estrangeiros que não apenas não funcionam no contexto nacional brasileiro, mas também estão em vias de extinção nos países que os criaram e adotaram. Como sempre, o Brasil está mais uma vez atrasado em relação ao resto do mundo, tentando copiar algo já ultrapassado ao invés de criar suas próprias soluções para as dificuldades de um mundo em permanente mutação.
Pior ainda é constatar que opiniões enviesadas e não acuradas como a do senhor ocupam as páginas da impressa de massa, contribuindo para a formação de conhecimentos equivocados nas mentes e atitudes daqueles que leem esse tipo de imprensa. No mundo acadêmico, tão criticado por pessoas que nada sabem ou que não participam dele, isso que o senhor faz em seu texto se chama falta de ética profissional, e teria colocado um ponto final na sua carreira.
Desnecessário dizer, senhor físico-economista, que o cerne
do seu argumento está no mínimo equivocado, revelando que pouco ou nada o senhor
conhece (ou conhece e está deturpando) da realidade educacional brasileira em qualquer nível, principalmente o
superior.
Como professor e pesquisador que sou, sugiro ao senhor, como o faço aos meus alunos, fazer um levantamento bibliográfico, checar suas fontes e evitar opinar sobre assuntos que não tenha pleno domínio.