Neste segundo volume de SORVETE, a autobiografia ficcionalizada da minha vida, eu vou contar a História verdadeira do meu sobrenome e da minha família, tudo por causa de uma aula que ministrei recentemente...
Ah! Se você quiser ler o primeiro volume, intitulado "A novela Vamp, a Psicanálise Freudiana e Cido", clique aqui.
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VOLUME 2:
AS ORIGENS CELTAS DE CIDO
Em 25 de junho de 2015, eu discuti com meus alunos de Narrativa Britânica do Século XX o conto "Structural Anthropology", de Adam Mars-Jones, à luz do pensamento de Stuart Hall no ensaio "A identidade cultural na pós-modernidade".
Em meio à leituras de passagens do conto intercaladas com infinitas explicações sobre o que Stuart Hall quer dizer quando afirma que "A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia" (p. 13), leituras e explicações pontuadas por breves parênteses sobre a absoluta ingenuidade da Escola de Frankfurt, do Modernismo e do Estruturalismo quando tentam explicar a identidade do sujeito contemporâneo, eu dei um exemplo pessoal: para demonstrar que a identidade unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia, mencionei diversos elementos da história do meu sobrenome relacionados aos antigos celtas e romanos de modo a construir uma narrativa aparentemente coerente sobre minhas origens. Convencidos pelos argumentos da minha história, pedi, de modo retórico, que meus alunos perguntassem pelas provas concretas e materiais do que eu havia narrado e, ao dizer que tais provas não existem e que eu simplesmente estruturei elementos esparsos em uma narrativa, demonstrei a eles que minha linda história de origens celtas não passava de uma fantasia, uma fabulação, pura ficção.
Bem... técnica, didática e interpretativamente, foi lindo. Eu mesmo me convenci de que estava criando uma história ficcional de mim mesmo (ou seja, comprovei que minha vida não passa de um simulacro) e teria convencido até Fredric Jameson e Jacques Derrida de que estava narrando uma autobiografia ficcionalizada.
Contudo, fato é que a narrativa pessoal que contei aos meus alunos como exemplo da falácia da identidade coerente e unificada é, na verdade, uma história real.
Eis a história real e verdadeira das minhas origens celtas.
Hecateu de Mileto, historiador grego do século VI antes de Cristo, disse que
No século III antes de Cristo, havia celtas em praticamente todo o mundo conhecido, tanto no ocidente quanto no oriente.
Na Bíblia, os celtas são referidos como gálatas, e Júlio César, no Commentarii de Bello Gallico, afirma que
Asterix, bem como Obelix e o cachorrinho Ideiafix eram, portanto, celtas.
No século V antes de Cristo, o historiador grego Heródoto já salientava que
Estrabão (século I antes de Cristo), no entanto, contradizendo Heródoto, é veemente quando comenta que
Mas é Diodoro que, no mesmo século I antes de Cristo, clarificará a questão ao diferenciar o entendimento romano e o entendimento grego de "celta":
Todavia, Diodoro esqueceu-se de que Timageto, o geógrafo, já havia cartografado a terra dos celtas e relatado, no mesmo século I antes de Cristo, que
De todas essas referências feitas por historiadores, geógrafos e filósofos antigos, pode-se depreender claramente que os celtas dominavam o mundo conhecido antes da ascensão de Roma a partir do século VIII antes de Cristo e, durante os períodos republicano e imperial da Roma Antiga, foram confinados em localidades delimitadas por meio de conflitos bélicos, como a Gália (atual França), a Bretanha (atuais Inglaterra e País de Gales), a Caledônia (atual Escócia) e a Hibérnia (atual Irlanda).
Em razão desse confinamento, afirmam conjuntamente os historiadores medievais Saxo Grammaticus (p. 1032) e Geoffrey of Monmouth (p. 718), ocorreu a reação celta. Aproveitando-se da brecha sangrenta aberta por Átila, o Huno, no século V depois de Cristo, celtas e vikings se uniram no que ficou conhecido como a Confederação Vândala e, em um movimento genial de estratégia militar, saquearam e derrubaram Roma em conjunto (celtas pela terra, vikings pelo mar). Esses dois povos são o que os romanos denominaram genericamente bárbaros.
Como celtas e vikings já tinham seus reinos estabelecidos — no que hoje é conhecido, respectivamente, como Ilhas Britânicas e Escandinávia —, Roma não lhes apeteceu como possível posto avançado ou colônia por ser excessivamente mediterrânea.
No entanto, muitos celtas ali permaneceram depois da invasão e se misturaram com os antigos habitantes do Lácio e da Etrúria, celticizando, desse modo, os latinos, naquele que é o primeiro caso conhecido de pós-colonialismo.
No decorrer da invasão e queda de Roma, os celtas foram chamados pelos romanos de rubei, plural de rubeus, "rubros", "ruivos" ou "vermelhos" em latim.
Essa designação, explica o historiador iluminista inglês Edward Gibbon (p. 725), ocorreu porque a genética dos antigos celtas lhes conferia pele muito branca, cabelos ruivos e olhos verdes.
No campo de batalha, os celtas, tanto homens quanto mulheres, lutavam normalmente nus, o que conferia um contraste muito grande entre a cor da pele e a cor dos cabelos, os quais foram associados ao fogo pelos supersticiosos romanos. Filhos do Fogo ou Cabelos de Fogo se tornaram designações comuns dos celtas entre os latinos, o que resultou, por exemplo, em imagens contemporâneas como a da planeswalker Chandra Nalaar do jogo de cartas Magic: the Gathering.
Tuatha Dé Danann (os "Povos da Deusa Danu"), seres divinos que vieram de Hy-Brasil — a ilha mítica, fantasma flutuante no Atlântico Norte, envolta em brumas e ressignificada como Avalon nas sagas arturianas — era como a mitologia irlandesa se referia aos celtas.
Com o declínio do Império Romano e a emergência das línguas, povos e culturas neolatinas, o latim deu lugar às línguas românicas, resultantes da mistura do sermo vulgaris com as diversas outras línguas e dialetos existentes nas ex-colônias do Império.
Na península itálica, onde ficava a antiga Roma, surgem os diversos dialetos do que hoje é identificado como o italiano standard (o italiano falado em Florença). Contribuiu para o aparecimento dessa transformação específica do latim a presença celta no local, cuja língua emprestou ao italiano moderno sua musicalidade característica e cuja cultura estabeleceu o vinho tinto e o molho de tomate como símbolos da italianidade, representados pela faixa vermelha da atual bandeira do país.
Com o passar do tempo, o italiano medieval transformou a palavra latina rubei (que ocorria também como a variante russi, plural de russus) em rossi, plural de rosso. O significado da palavra, no entanto, permaneceu e permanece inalterado: rossi, em italiano, significa "vermelhos", "rubros", "ruivos" e, modernamente, também "tintos". Na etimologia italiana da palavra, ensina-nos o Zingarelli, rossi designava, particularmente durante a Baixa Idade Média, os italianos descendentes dos celtas que mantiveram as características físicas desse povo: pele muito branca, cabelos e demais pelos do corpo de uma coloração vermelha radiante e olhos verdes.
No decorrer do tempo, e com as diversas misturas de raças ocorridas em todos os locais do Ocidente, variações começaram a ocorrer em tais características: o vermelho passou a estar não necessariamente no cabelo e nos pelos, mas nas maçãs do rosto, nas manchas de molho de tomate na roupa, nas cores usadas no cotidiano; o branco não está mais apenas na cor da pele, podendo se manifestar também na cor dos cabelos e dos pelos, nas roupas, nos sapatos e no próprio macarrão; e o verde também já não está mais apenas nos olhos (que podem ser azuis ou castanhos), mas muitas vezes na bandeira do país, em tatuagens, nos trevos de quatro folhas plantados no jardim, no manjericão essencial à pizza margherita.
Independentemente de quaisquer transformações no decorrer do tempo, a palavra rossi continua designando, atualmente, o que se pode entender como a base da italianidade, a qual foi profundamente influenciada e transformada pelos celtas a ponto da palavra que os identificava ser, atualmente, o símbolo máximo da própria Itália (junto do macarrão e do queijo parmesão): todos os italianos e seus descendentes são rossi, como o vinho, o salame, o molho de tomate e a impaciência característica dessa cultura. Rossi se tornou também, particularmente a partir da Renascença ou Alta Idade Média, o sobrenome mais comum na Itália, ocorrendo no país de norte a sul e de leste a oeste.
Rossi é o meu sobrenome, o sobrenome da minha família, que chegou ao Brasil em 1894 no vapor Arno, um dos navios que geralmente fazia o trajeto transatlântico entre o porto de Nápoles e o porto de Santos.
De Santos, diz o documento oficial emitido pelo Museu do Imigrante em São Paulo, o qual tenho aqui em minhas mãos neste momento, meus antepassados tomaram um trem rumo ao norte e desembarcaram na pequena estação ferroviária de Ribeirão Bonito, no interior do estado de São Paulo. Estabeleceram-se na região (particularmente nas cidades de Boa Esperança do Sul, Araraquara e, posteriormente, São Carlos) por meio do trabalho nas lavouras de café.
O sobrenome Rossi é, evidentemente, legado de meu pai, pois as leis brasileiras ditam que os filhos herdam o sobrenome do pai, e não da mãe. Contudo, mesmo que fosse possível, como na Espanha, herdar o sobrenome da mãe, não mudaria muita coisa no meu caso: o sobrenome de família da minha mãe é Lucca, tão italiano quanto Rossi e, desse modo, tão rosso quanto Rossi.
Meu pai conta que, até a sua adolescência, o italiano era falado na casa dos meus avós, e que meus bisavós não falavam português.
Do lado da família de minha mãe, meus bisavós também não falavam português (a avó de minha mãe, inclusive, falava espanhol além do italiano, pois sua família tomou o vapor errado e, ao invés de desembarcarem em Santos, acabaram desembarcando em Buenos Aires, onde ficaram por cerca de um ano e meio antes de conseguirem vir para o Brasil).
Em 2000, quando eu estava no segundo ano de faculdade, cursei língua italiana além do inglês na UNESP - Araraquara. Na primeira aula, um certo professor de italiano chamado Sergio Mauro, também filho de italianos, preocupado em ensinar, além da língua, também a cultura desse povo, perguntou a cada um dos alunos seus respectivos sobrenomes, pois, de acordo com ele, é possível identificar pelo sobrenome (imprecisamente, é claro, mas o suficiente para se ter uma noção mínima) de que região da Itália imigrou um determinado grupo familiar.
Muitos dos meus colegas foram bastante sortudos, pois pelos seus sobrenomes Sergio lhes apontou de onde vieram seus antepassados no mapa da Itália. O mesmo não se pode dizer do meu caso, pois sendo o Rossi italiano equivalente ao Silva brasileiro (palavras do próprio Sergio), simplesmente não é possível utilizar a técnica do sobrenome para descobrir de que cidade, província ou região da Itália vieram os antepassados.
Confesso que fiquei um pouco frustrado com isso, pois fui cursar italiano com a intenção de descobrir um pouquinho mais sobre minhas raízes.
Por sorte, minha frustração não foi completa, pois em uma outra aula eu mencionei ao mesmo Sergio uma palavra que meu pai costumava falar quando eu era criança: polastro.
Sergio ficou bastante espantado com essa menção, pois ela é muito específica e reveladora. Designa "frango" em um dos dialetos do extremo sul da península itálica, certamente siciliano, calabrês ou pugliese.
Graças a essa menção, sei pelo menos que algum dos meus tataravós veio do sul da Itália, ainda que meu pai diga que, quando criança, costumava ouvir com certa frequência a palavra Bergamo, que só pode se referir à cidade homônima na Lombardia, extremo norte do país...
Infelizmente, precisei deixar de cursar italiano (pelo que Sergio nunca me perdoou e não cansa, ainda hoje, de me chamar de tradittore e barbaro) para poder me dedicar ao inglês, a língua e cultura nas quais decidi me especializar durante meus anos de formação.
Inconsciente coletivo, sincronicidade, reencarnação ou simplesmente coincidências, fato é que as identidades são migrantes atualmente. Logo, ter origens celtas pode ser uma escolha, ou mais um dos diversos mitos identitários que se pode escolher para explicar a si mesmo.
É dessa forma que explico a mim mesmo.
DIODORO. Biblioteca Histórica. Madrid: Gredos, 1872.
ESTRABÃO. Geographica. London: George Bells & Sons, 1903.
GIBBON, Edward. The History of the Decline and Fall of the Roman Empire. London: Strahan & Cadell, 1789.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HECATEU DE MILETO. Hecataei Milesii Fragmenta: Scylacis Caryandensis Periplus. Ed. Rudolph Heinrich Klausen. Berlin: G. Reimeri, 1831.
HERÓDOTO. Los Nueve Libros de la Historia. Madrid: Bartolomé Pou, 1802.
JÚLIO CÉSAR. Commentarii de Bello Gallico. New York: Harper & Brothers, 1869.
MONMOUTH, Geoffrey of. Historia Regum Britanniae. Halle: Eduard Anton, 1854.
SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum. New York: Norroena Society, 1905.
TIMAGETO. Geographica. London: Herbert & Cia, 1810.
ZINGARELLI. Roma: Zanichelli, 1917.
Bem... técnica, didática e interpretativamente, foi lindo. Eu mesmo me convenci de que estava criando uma história ficcional de mim mesmo (ou seja, comprovei que minha vida não passa de um simulacro) e teria convencido até Fredric Jameson e Jacques Derrida de que estava narrando uma autobiografia ficcionalizada.
Contudo, fato é que a narrativa pessoal que contei aos meus alunos como exemplo da falácia da identidade coerente e unificada é, na verdade, uma história real.
Eis a história real e verdadeira das minhas origens celtas.
* * *
Hecateu de Mileto, historiador grego do século VI antes de Cristo, disse que
os celtas [Κελτοί, em grego] se espalharam pelo continente europeu a partir do segundo milênio antes de Cristo, tendo eles construído Stonehenge muito antes dos egípcios sequer pensarem na possibilidade das pirâmides (p. 366).
Stonehenge
No século III antes de Cristo, havia celtas em praticamente todo o mundo conhecido, tanto no ocidente quanto no oriente.
Na Bíblia, os celtas são referidos como gálatas, e Júlio César, no Commentarii de Bello Gallico, afirma que
"Celta" era a maneira pela qual os gauleses se chamavam a si próprios na "língua celta" (lingua Celtae) (p. 125).
Asterix, bem como Obelix e o cachorrinho Ideiafix eram, portanto, celtas.
No século V antes de Cristo, o historiador grego Heródoto já salientava que
O rio Ister nasce na terra dos celtas na cidade de Pyrene e percorre o centro da Europa. Os celtas vivem além das colunas de Hércules, sendo vizinhos dos cinésios e são a mais ocidental de todas as nações que habitam a Europa. E assim, se estendem por toda a Europa até as fronteiras da Cítia (p. 589).
Estrabão (século I antes de Cristo), no entanto, contradizendo Heródoto, é veemente quando comenta que
Eratóstenes diz que até Gades o exterior é habitado pelos gálatas; e se a parte ocidental da Europa é ocupada por eles, esqueceu-se deles na sua descrição da Ibéria, nunca fazendo menção aos gálatas (p. 818).
Mas é Diodoro que, no mesmo século I antes de Cristo, clarificará a questão ao diferenciar o entendimento romano e o entendimento grego de "celta":
E agora, será útil fazer uma distinção que é desconhecida de muitos: os povos que habitam no interior, acima de Massália, os das encostas dos Alpes, e os deste lado das montanhas dos Pireneus, são chamados celtas, ao passo que os povos que estão estabelecidos acima desta terra Céltica, nas partes que se estendem para o norte, ambas ao longo do oceano e ao longo da Montanha Hercínia, e todos os povos que vêm depois destas, tão longe como a Cítia, são conhecidos como gauleses. Os romanos, no entanto, incluem todas estas nações juntando-as debaixo de um único nome, chamando-as a uma e a todos de gauleses (p. 440).
Todavia, Diodoro esqueceu-se de que Timageto, o geógrafo, já havia cartografado a terra dos celtas e relatado, no mesmo século I antes de Cristo, que
o Fásis e o Istro procedem dos Montes Ripeos, que são da terra keltica, e logo vão desaguar numa lagoa dos celtas (p. 915).
De todas essas referências feitas por historiadores, geógrafos e filósofos antigos, pode-se depreender claramente que os celtas dominavam o mundo conhecido antes da ascensão de Roma a partir do século VIII antes de Cristo e, durante os períodos republicano e imperial da Roma Antiga, foram confinados em localidades delimitadas por meio de conflitos bélicos, como a Gália (atual França), a Bretanha (atuais Inglaterra e País de Gales), a Caledônia (atual Escócia) e a Hibérnia (atual Irlanda).
Em razão desse confinamento, afirmam conjuntamente os historiadores medievais Saxo Grammaticus (p. 1032) e Geoffrey of Monmouth (p. 718), ocorreu a reação celta. Aproveitando-se da brecha sangrenta aberta por Átila, o Huno, no século V depois de Cristo, celtas e vikings se uniram no que ficou conhecido como a Confederação Vândala e, em um movimento genial de estratégia militar, saquearam e derrubaram Roma em conjunto (celtas pela terra, vikings pelo mar). Esses dois povos são o que os romanos denominaram genericamente bárbaros.
Os bárbaros e a queda do Império Romano
Como celtas e vikings já tinham seus reinos estabelecidos — no que hoje é conhecido, respectivamente, como Ilhas Britânicas e Escandinávia —, Roma não lhes apeteceu como possível posto avançado ou colônia por ser excessivamente mediterrânea.
No entanto, muitos celtas ali permaneceram depois da invasão e se misturaram com os antigos habitantes do Lácio e da Etrúria, celticizando, desse modo, os latinos, naquele que é o primeiro caso conhecido de pós-colonialismo.
No decorrer da invasão e queda de Roma, os celtas foram chamados pelos romanos de rubei, plural de rubeus, "rubros", "ruivos" ou "vermelhos" em latim.
Essa designação, explica o historiador iluminista inglês Edward Gibbon (p. 725), ocorreu porque a genética dos antigos celtas lhes conferia pele muito branca, cabelos ruivos e olhos verdes.
No campo de batalha, os celtas, tanto homens quanto mulheres, lutavam normalmente nus, o que conferia um contraste muito grande entre a cor da pele e a cor dos cabelos, os quais foram associados ao fogo pelos supersticiosos romanos. Filhos do Fogo ou Cabelos de Fogo se tornaram designações comuns dos celtas entre os latinos, o que resultou, por exemplo, em imagens contemporâneas como a da planeswalker Chandra Nalaar do jogo de cartas Magic: the Gathering.
Chandra Nalaar
Tuatha Dé Danann (os "Povos da Deusa Danu"), seres divinos que vieram de Hy-Brasil — a ilha mítica, fantasma flutuante no Atlântico Norte, envolta em brumas e ressignificada como Avalon nas sagas arturianas — era como a mitologia irlandesa se referia aos celtas.
Os Tuatha Dé Danann
Com o declínio do Império Romano e a emergência das línguas, povos e culturas neolatinas, o latim deu lugar às línguas românicas, resultantes da mistura do sermo vulgaris com as diversas outras línguas e dialetos existentes nas ex-colônias do Império.
Na península itálica, onde ficava a antiga Roma, surgem os diversos dialetos do que hoje é identificado como o italiano standard (o italiano falado em Florença). Contribuiu para o aparecimento dessa transformação específica do latim a presença celta no local, cuja língua emprestou ao italiano moderno sua musicalidade característica e cuja cultura estabeleceu o vinho tinto e o molho de tomate como símbolos da italianidade, representados pela faixa vermelha da atual bandeira do país.
Com o passar do tempo, o italiano medieval transformou a palavra latina rubei (que ocorria também como a variante russi, plural de russus) em rossi, plural de rosso. O significado da palavra, no entanto, permaneceu e permanece inalterado: rossi, em italiano, significa "vermelhos", "rubros", "ruivos" e, modernamente, também "tintos". Na etimologia italiana da palavra, ensina-nos o Zingarelli, rossi designava, particularmente durante a Baixa Idade Média, os italianos descendentes dos celtas que mantiveram as características físicas desse povo: pele muito branca, cabelos e demais pelos do corpo de uma coloração vermelha radiante e olhos verdes.
No decorrer do tempo, e com as diversas misturas de raças ocorridas em todos os locais do Ocidente, variações começaram a ocorrer em tais características: o vermelho passou a estar não necessariamente no cabelo e nos pelos, mas nas maçãs do rosto, nas manchas de molho de tomate na roupa, nas cores usadas no cotidiano; o branco não está mais apenas na cor da pele, podendo se manifestar também na cor dos cabelos e dos pelos, nas roupas, nos sapatos e no próprio macarrão; e o verde também já não está mais apenas nos olhos (que podem ser azuis ou castanhos), mas muitas vezes na bandeira do país, em tatuagens, nos trevos de quatro folhas plantados no jardim, no manjericão essencial à pizza margherita.
Independentemente de quaisquer transformações no decorrer do tempo, a palavra rossi continua designando, atualmente, o que se pode entender como a base da italianidade, a qual foi profundamente influenciada e transformada pelos celtas a ponto da palavra que os identificava ser, atualmente, o símbolo máximo da própria Itália (junto do macarrão e do queijo parmesão): todos os italianos e seus descendentes são rossi, como o vinho, o salame, o molho de tomate e a impaciência característica dessa cultura. Rossi se tornou também, particularmente a partir da Renascença ou Alta Idade Média, o sobrenome mais comum na Itália, ocorrendo no país de norte a sul e de leste a oeste.
Rossi é o meu sobrenome, o sobrenome da minha família, que chegou ao Brasil em 1894 no vapor Arno, um dos navios que geralmente fazia o trajeto transatlântico entre o porto de Nápoles e o porto de Santos.
De Santos, diz o documento oficial emitido pelo Museu do Imigrante em São Paulo, o qual tenho aqui em minhas mãos neste momento, meus antepassados tomaram um trem rumo ao norte e desembarcaram na pequena estação ferroviária de Ribeirão Bonito, no interior do estado de São Paulo. Estabeleceram-se na região (particularmente nas cidades de Boa Esperança do Sul, Araraquara e, posteriormente, São Carlos) por meio do trabalho nas lavouras de café.
O sobrenome Rossi é, evidentemente, legado de meu pai, pois as leis brasileiras ditam que os filhos herdam o sobrenome do pai, e não da mãe. Contudo, mesmo que fosse possível, como na Espanha, herdar o sobrenome da mãe, não mudaria muita coisa no meu caso: o sobrenome de família da minha mãe é Lucca, tão italiano quanto Rossi e, desse modo, tão rosso quanto Rossi.
Meu pai conta que, até a sua adolescência, o italiano era falado na casa dos meus avós, e que meus bisavós não falavam português.
Do lado da família de minha mãe, meus bisavós também não falavam português (a avó de minha mãe, inclusive, falava espanhol além do italiano, pois sua família tomou o vapor errado e, ao invés de desembarcarem em Santos, acabaram desembarcando em Buenos Aires, onde ficaram por cerca de um ano e meio antes de conseguirem vir para o Brasil).
Em 2000, quando eu estava no segundo ano de faculdade, cursei língua italiana além do inglês na UNESP - Araraquara. Na primeira aula, um certo professor de italiano chamado Sergio Mauro, também filho de italianos, preocupado em ensinar, além da língua, também a cultura desse povo, perguntou a cada um dos alunos seus respectivos sobrenomes, pois, de acordo com ele, é possível identificar pelo sobrenome (imprecisamente, é claro, mas o suficiente para se ter uma noção mínima) de que região da Itália imigrou um determinado grupo familiar.
Muitos dos meus colegas foram bastante sortudos, pois pelos seus sobrenomes Sergio lhes apontou de onde vieram seus antepassados no mapa da Itália. O mesmo não se pode dizer do meu caso, pois sendo o Rossi italiano equivalente ao Silva brasileiro (palavras do próprio Sergio), simplesmente não é possível utilizar a técnica do sobrenome para descobrir de que cidade, província ou região da Itália vieram os antepassados.
Confesso que fiquei um pouco frustrado com isso, pois fui cursar italiano com a intenção de descobrir um pouquinho mais sobre minhas raízes.
Por sorte, minha frustração não foi completa, pois em uma outra aula eu mencionei ao mesmo Sergio uma palavra que meu pai costumava falar quando eu era criança: polastro.
Sergio ficou bastante espantado com essa menção, pois ela é muito específica e reveladora. Designa "frango" em um dos dialetos do extremo sul da península itálica, certamente siciliano, calabrês ou pugliese.
Graças a essa menção, sei pelo menos que algum dos meus tataravós veio do sul da Itália, ainda que meu pai diga que, quando criança, costumava ouvir com certa frequência a palavra Bergamo, que só pode se referir à cidade homônima na Lombardia, extremo norte do país...
Infelizmente, precisei deixar de cursar italiano (pelo que Sergio nunca me perdoou e não cansa, ainda hoje, de me chamar de tradittore e barbaro) para poder me dedicar ao inglês, a língua e cultura nas quais decidi me especializar durante meus anos de formação.
Hoje, sou professor de literatura inglesa na mesma universidade onde estudei, e eis que o círculo se fecha.
Os celtas habitaram principalmente as Ilhas Britânicas, e sua mitologia, arte e cultura permaneceram e permanecem fortemente entranhadas na literatura inglesa por meio das sagas arturianas, do Romantismo, da tradição da Bruxaria britânica e da ficção de fantasia. Mesmo o romance gótico, uma tradição que não encontra paralelo no universo celta, foi indiretamente influenciado por essa cultura nas construções de cenário e enredo. O castelo de Otranto, por exemplo, primeiro romance gótico, se passa em Otranto, cidade da Puglia (o "salto da bota" na península itálica), um dos possíveis lugares de onde meus antepassados vieram.
Se Jung estiver certo e o inconsciente coletivo de fato existir; se o Espiritismo e o Budismo estiverem certos e a reencarnação existir, então não pode ser coincidência que um descendente de italianos cujo sobrenome designa que sua ascendência mais antiga é, irrefutavelmente, celta, tenha se tornado professor de literatura inglesa e ensine, oriente e pesquise aspectos dessa cultura, que tem nas Ilhas Britânicas seu principal lar.
Dentro desse raciocínio, menos coincidente ainda deve ser o fato de que esse descendente de ítalo-celtas ensine, oriente e pesquise, direta ou indiretamente, sobre sua raiz ancestral em um país cujo nome está presente nos mitos celtas desde tempos imemoriais: Hy-Brasil, a ilha mítica celta, é, provavelmente, uma das inspirações para o nome Brasil, dizem os historiadores da Universidade de Brasília.
Hy-Brasil mostrada em relação à Irlanda em mapa medieval
E quanto mais eu busco, mais coincidências (que obviamente não são coincidências) encontro.
Há algum tempo atrás, meu Pai de Santo chamou-me no terreiro de Candomblé que frequento e me disse que, em uma queda de búzios, o oráculo lhe disse que eu nasci com o dom da bruxaria, e que um indício disso são as feições do meu rosto, particularmente o cavanhaque que uso (que, diferente do cavanhaque comum, não fecha, deixando meu rosto com a famosa feição viperina clássica dos druidas e, posteriormente, da imagem de Lúcifer deturpada pelo Cristianismo católico).
A Bruxaria é um dos principais legados religiosos e culturais dos celtas. O que se entende por Bruxaria britânica ou Bruxaria europeia nada mais é do que a prática da religião celta antiga (que nada tem a ver com Wicca), e está presente em um dos meus textos literários preferidos: a saga Harry Potter.Inconsciente coletivo, sincronicidade, reencarnação ou simplesmente coincidências, fato é que as identidades são migrantes atualmente. Logo, ter origens celtas pode ser uma escolha, ou mais um dos diversos mitos identitários que se pode escolher para explicar a si mesmo.
É dessa forma que explico a mim mesmo.
Um dos diversos brasões de armas atribuídos à família Rossi
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Referências Bibliográficas
DIODORO. Biblioteca Histórica. Madrid: Gredos, 1872.
ESTRABÃO. Geographica. London: George Bells & Sons, 1903.
GIBBON, Edward. The History of the Decline and Fall of the Roman Empire. London: Strahan & Cadell, 1789.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HECATEU DE MILETO. Hecataei Milesii Fragmenta: Scylacis Caryandensis Periplus. Ed. Rudolph Heinrich Klausen. Berlin: G. Reimeri, 1831.
HERÓDOTO. Los Nueve Libros de la Historia. Madrid: Bartolomé Pou, 1802.
JÚLIO CÉSAR. Commentarii de Bello Gallico. New York: Harper & Brothers, 1869.
MONMOUTH, Geoffrey of. Historia Regum Britanniae. Halle: Eduard Anton, 1854.
SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum. New York: Norroena Society, 1905.
TIMAGETO. Geographica. London: Herbert & Cia, 1810.
ZINGARELLI. Roma: Zanichelli, 1917.
Muito interessante o seu texto. Aprendi bastante sobre nossos ancestrais e tive uma iluminação sobre algumas questões existenciais. Eu fico feliz em saber que você sabe quem realmente é e de onde vem. Isto lhe da um vislumbre de até onde você pode chegar e dos motivos da sua jornada. Você só precisa fazer uma correção no seu texto: em algum momento você coloca "Renascença ou Alta Idade Média" como períodos históricos próximos. Creio que você quis dizer "Renascença ou Baixa Idade Média", uma vez que a Alta Idade Média se refere ao início desse período e da formação do sistema feudal. Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirÉ tudo ficção... acho... ;)
ResponderExcluirQue bom que você gostou!
Espero que tenha s divertido.
Vou ver a questão da Idade Média. Rsrsrs