sexta-feira, 30 de setembro de 2011

SORVETE: AS CRÔNICAS DE FOGO, GELO, AÇÚCAR E PISTACHE DE CIDO - volume 1: A NOVELA VAMP, A PSICANÁLISE FREUDIANA E CIDO

SORVETE: AS CRÔNICAS DE FOGO, GELO, AÇÚCAR E PISTACHE DE CIDO é o título que escolhi para narrar a saga épica, dramática e cômica da minha vida. Sim, porque toda pessoa que escreve um blog que se preze vai, em algum momento, autobiografar-se.
Como eu adoro sorvete de pistache, e como, aos moldes americanos, quando fico dramático e sentimental (mexicano, portanto) acabo ingerindo uma boa quantidade de doces (não apenas sorvete de pistache, diga-se), o título Sorvete me pareceu muito apropriado...
 
Nessas crônicas pretendo contar um pouco sobre as leituras, os filmes e os aspectos culturais que são chaves para eu ter me tornado o que sou hoje: um ser humano como qualquer outro, ou seja, alguém como você, mas com o fator imensamente complicador de ter consciência dessa condição.
Esses livros, filmes e gadgets culturais são, até o momento, os meus Outros, aquilo em que me reconheço e que, por conseguinte, me reconhecem. Essas coisas estão em mim e eu nelas e falar sobre elas é, até onde consigo perceber, falar de mim e, sobretudo, falar sobre Literatura, Cinema e cultura de modo geral.
Então, horrorizem-se!

VOLUME 1:

A NOVELA VAMP, A PSICANÁLISE FREUDIANA E CIDO

No último dia 26 de setembro (de 2011) recebi um e-mail da minha amiga Cher Lopes (do Literando) contendo um link para o post dela naquele dia: "Sangue. (Vampiro como Figura Pop)". Ali, Cher narra toda a sua incrível trajetória de vida (ou seria morte?) relacionada aos vampiros, essas criaturas tão banalizadas ultimamente. Cher escreve de tal forma que estou em dúvida se ela não é a Rainha dos Condenados perambulando entre nós...
Nesse texto, Cher menciona a novela Vamp, veiculada pela famigerada Rede Globo entre 15 de julho de 1991 e 8 de fevereiro de 1992.
Bem... se você é muito jovem para conhecer essa novela, se estava morto(a) na época e agora miraculosamente voltou à Vida e quer se inteirar de tudo que aconteceu de interessante nos últimos 20 anos ou se simplesmente não se lembra mais eu sugiro a consulta dos links abaixo.
Ah! E antes que me perguntem: não tenho absolutamente nada contra novelas. Assisti muitas no decorrer das décadas de 1980 e 1990. Parei de assistir novelas em 1996 pelo fato da qualidade ter caído a níveis insustentáveis já naquela época. Não se fazem mais novelas com a qualidade artística e de roteiro de Roque Santeiro (1985 - 1986), Vale Tudo (1988 - 1989), Que Rei Sou Eu? (1989), Rainha da Sucata (1990) ou Éramos Seis (1994). Vamp foi a penúltima novela decente que assisti. A última foi a A Próxima Vítima (1995). Hoje, eu me recuso terminantemente a assistir novela. Aliás, recuso-me a assistir TV aberta.

!!! SPOILERS ALERT !!!
se você não quer saber tudo que acontece em Vamp, pare aqui!

Detalhes sobre a novela no Teledramaturgia: clique aqui
(Para quem deseja saber quantos capítulos, quem era o elenco e os nomes das personagens, quem dirigiu a novela etc.)

Para quem quer saber curiosidades sobre a trama: clique aqui
(Só interessam as curiosidades, pois o resto é plágio do conteúdo do Teledramaturgia)

Para quem quer assistir a novela toda no YouTube: antigamente, havia um canal do YouTube que disponibilizava a novela inteira, mas o Grande Satã Globo fez com que esse canal fosse retirado do web.
Minha sugestão é que você procure "Vamp" na linha de busca do YouTube e vá assistindo o que encontrar (se tiver paciência, é possível assistir à novela toda).

* * *

Eu tinha entre dez e onze anos de idade quando Vamp foi veiculada no horário das 19h. Nessa época, eu cursava a quinta série do ensino fundamental, no período da manhã, em uma das unidades do SESI aqui de São Carlos e, à tarde, trabalhava meio período como empacotador numa filial das redes de supermercados Jaú Serve (que só existem aqui nesta região do interior paulista). Empacotador de supermercado foi meu primeiro emprego. Evidente que a legislação não permitia que eu trabalhasse com carteira assinada (eu era uma criança, neh minha gente! Não nos esqueçamos desse detalhe), logo esse tempo não vai contar para a minha aposentadoria (rsrsrsrs).
Eu trabalhava até umas seis da tarde e dava tempo de chegar em casa e assistir Vamp.

Acompanhei a trama toda do primeiro ao último capítulo e há lembranças muito vívidas em minha mente ainda hoje, passados praticamente vinte anos: a cena do primeiro capítulo em que Natasha (Cláudia Ohana) dança Sadness, do Enigma, na praça da catedral de São Marcos em Veneza; a dança dos mortos-vivos ressuscitados por Vlad (Ney Latorraca) no cemitério de Armação dos Anjos (cidade fictícia onde se passava a história); Jorge Fernando interpretando o médico hipnotizador maluco Vicentinho Fernando; Rita Lee de vampira; os tapas na cara que Vlad aplicava à perigosa e ao mesmo tempo cômica família Mattoso; a cena em que Mary Mattoso (Patrícia Travassos) resolve se tornar bruxa e concentrar seu poder no seu rabo de cavalo; a cena em que Vlad coloca um zíper (literalmente) na boca de Mary Mattoso; a caça-vampiros inglesa (e que é ironicamente transformada em vampira e não é inglesa...) Alice Penn Taylor (Vera Holtz); a linda transformação de Pai Gil (Tony Tornado) e Branca (Aída Leinner) respectivamente em Oxalá e Ogun para lutar contra os vampiros e contra Vlad; a transformação de Vlad em Nosferatu (a Besta do Apocalipse no enredo) e tantas outras cenas que me fizeram rir e, sem o saber, aprender muito.

Vamp foi meu primeiro contato com o mundo dos vampiros. Eu só viria a ler Dracula, a bíblia do mito, dezenove anos depois (sim, é isso mesmo: li Dracula no ano passado, pois eu queria ler a obra em seu original inglês, não em tradução, e só tive tempo de fazer isso em 2010).
Depois de muito pesquisar a figura do vampiro, acabei descobrindo que todos os elementos principais de sua mitologia estavam contidos naquela novela, hoje aparentemente boba aos olhos de muitos.

A novela de Antônio Calmon tinha uma quantidade imensa (e desnecessária) de personagens secundárias. Para se ter uma ideia, duas das personagens principais, Carmem Maura (Joana Fomm) e o capitão Jonas Rocha (Reginaldo Faria), tinham cada uma seis filhos. É uma dessas personagens secundárias, um dos filhos de Carmem Maura, que vai acabar mudando a minha vida para sempre.

O filho mais novo da personagem de Joana Fomm se chamava Sig (interpretado por João Rebello). Ele usava óculos fundo de garrafa, era excessivamente inteligente, falava um português quase incompreensível de tão castiço e foi o primeiro a descobrir — ainda que tenha sido um dos últimos a acreditar — a existência de vampiros em Armação dos Anjos.
Uma característica fundamental que me chamou atenção na época era o livro que Sig vivia carregando para todo lado embaixo do braço: um volume único das Obras Completas de Freud (a edição é espanhola, certamente, pois esse livro só existe em volume único nessa língua). Sig, cujo nome obviamente remete ao primeiro nome do Médico de Viena (Sigmund), vivia citando Freud na trama, numa clara alusão à relação entre vampiros e sexualidade. A personagem era, evidentemente, um nerd (conceito que não existia na época), mas isso é assunto para um outro volume dessas Crônicas...

Sendo a criança que eu era — precoce, para dizer o mínimo, por força das circunstâncias —, imediatamente identifiquei-me com Sig: eu queria ser Sig. Eu queria ler o livro que Sig segurava sob o braço. Eu queria falar como ele. Eu queria usar os óculos que ele usava (na época eu não usava óculos ainda). Depois de Vlad, Sig era a minha personagem preferida. Como Sig vivia repetindo o clichê "Freud explica", eu fiquei muito curioso em saber quem era Freud, e hoje isso pode soar estranho aos meus alunos, por exemplo, que me ouvem falar de Freud como seu eu fosse Freud: sim, meus caros, houve um tempo em que Cido não sabia quem era Freud.

Eu comecei então a tentar buscar informações sobre esse tal Freud: quem era ele? o que ele fez? por que havia um livro tão grande escrito por ele? o que significa "Freud explica"?
O primeiro lugar, e único disponível para as minhas limitações de tempo (não dava para ir à Biblioteca Municipal de São Carlos, por exemplo... eu trabalhava à tarde, certo? E não existia computador ou internet na época), era a Biblioteca do SESI. Havia livros de Freud nessa biblioteca. Aliás, havia uma quantidade imensa de livros dele lá, o que me assustou bastante na época (eu não sabia ainda que as Obras Completas tinham, em sua edição brasileira, 24 volumes). Tirei um dos livros da estante, não me lembro qual, e me dirigi ao balcão. Qual não foi minha frustração ao ser informado pela adorável dona Marisa (sim, ela era adorável mesmo, não é ironia), a bibliotecária, que eu não podia retirar aquele livro porque ele era restrito apenas aos professores. Hoje eu sei por que Freud era proibido aos alunos na época: seria uma imprudência deixar uma criança de 11 anos de idade conhecer segredos que ela mesma não entendia, como sua sexualidade, por exemplo...

Eu fiquei triste por não poder ler um daqueles livrões de capa vermelha do tal Freud. Aí, não sei por que cargas d'água, resolvi consultar uma enciclopédia. Uma Barsa da vida (essa era permitida, pelo menos). No verbete "Sigmund Freud" da Barsa eu descobri que o tal Freud se chamava Sigmund, que ele era austríaco e que tinha inventado uma coisa chamada Psicanálise, algo que tinha revolucionado o mundo. Cheguei a dar uma olhada no verbete "Psicanálise", mas não entendi uma palavra: eu ainda não sabia que esse verbete tinha sido escrito pelo próprio Freud e que ler quaisquer de seus textos constitui experiência semelhante a ler Literatura Clássica ou Filosofia. Eu fui obrigado a desistir da minha busca e ficar só com as pouquíssimas cenas em que Sig aparece em Vamp.

O tempo passou, mas o fogo da curiosidade sobre Freud e a Psicanálise não passaram. Quando eu entrei na universidade, aos dezoito anos, uma das minhas primeiras visitas à biblioteca da UNESP - Araraquara foi justamente para matar essa curiosidade. E eu me apaixonei pelo Médico de Viena.
Li vários de seus textos, estudei sua vida, contemplei seu semblante por meio das diversas fotos que existem, li textos sobre seus textos, li os textos lidos pelo próprio Freud, li seus seguidores e detratores, cursei disciplinas de pós-graduação sobre seu pensamento, me deixo analisar por suas teorias desde os 20 anos de idade e descobri quem sou nesse percurso. Acabei usando seus textos em meu mestrado, influenciando minha irmã de tal modo que ela se tornou psicanalista, influenciando minha amiga Vívien ao ponto dela tomar Freud como um dos pilares teóricos de sua dissertação de mestrado, analisando minha própria mãe segundo o pensamento do Pai da Psicanálise, analisando meus amigos e alunos da mesma forma. Muitas das minhas aulas sobre Literatura são inteiramente calcadas nas teorias freudianas. O pensamento de Freud tornou-se uma das maneiras pelas quais eu vejo e interpreto o mundo, os textos, a Arte, o outro e a mim mesmo.

É por tudo isso que eu disse na minha defesa de doutorado que Freud não explica nada. Ele apenas sugere.
De fato, Freud não explica nada, mas concede àqueles que se aventuram pelos seus textos as ferramentas para explicar, e normalmente essa explicação, não importa do que, é extremamente complexa e multifacetada. Vários segredos da existência podem estar nela contidos, daí sempre a sugestão, e nunca a resposta.

É por tudo isso também que, na dedicatória da minha tese de doutorado, eu escrevo o seguinte para o Médico de Viena: "A Sigmund Freud, que me salvou, in memoriam".

Obrigado Antônio Calmon, Jorge Fernando e (odiosa) Rede Globo por terem me dado a oportunidade de ter assistido Vamp. Eu não seria quem sou se não tivesse assistido a essa novela.

4 comentários:

  1. Oi Cido, tudo bem? Faz tempo que não fazemos contato, mas sempre que chega notícia de post novo no seu blog eu leio... e sempre... gosto!
    Gostei muito desta primeira aparição das "crônicas nada heróicas de Cido. Com uma ressalva: na época eu não vi nada na Vamp. Assisti pouco, porque achava muita chata e pobre. A sensação que tinha era de incômodo de ver tantos atores e atrizes bons vestidos de vampalhaços. Achava o figurino tosco, caricato e sem graça. Lamentava a falta de elegância que existia nos vampiros em geral e principalmente no Drácula de Bram Stockler (é assim que grafa?). Ah! lembrei que quando assisti o filme, fiquei anos com vontade de provar absinto, só pela elegância da cena em que Drácula ser absinto para sua amada. Quando finalmente foi liberado no Brasil, logo o provei e achei o gosto sem graça, mas a visão da elegância de Drácula permaneceu. Em Vamp não vi nada de elegância, achei um pastelão sem nenhuma sensualidade característica desta figura. Pior ainda está hoje, com a saga de stephenie meyer de colocar as figuras de vampiros vegetarianos. É, pensando bem, vamp foi melhor do que a saga crepúsculo. Você tem razão. Vou comprar bastante carne para afastar os vampiros vegetarianos de mim. Cruz Credo! Prefiro Chico Anísio fazendo o Beto Carneiro, o vampiro brasileiro. Fui! Edner

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  2. Naquela época pré-histórica, o Cido uma vez tropeçou e queimou as mãos porque a superfície da terra ainda estava quente. Ah, como era bom ver a revoada dos filhotes de pterodátilos ao entardecer! Muitos deles morriam quando passavam por cima dos vulcões e eram incinerados pelas lufadas de lava. Vez ou outra caía uma linda chuva de meteoritos que tingia os céus de escarlate e arrebatavam grande parte da face da terra. Sinto falta daquela tranquilidade. Sim, eu estava lá e me lembro disso tudo que o Cido mencionou, embora eu fosse muito pequeno e muito mais ingênuo do que sou hoje para entender algumas coisas. Pra mim era tudo uma grande brincadeira, fantasia, magia... mas, alguma coisa me dizia que para o Cido era algo mais. Era o início do caminho do herói que ele trilhava precocemente, em parte por imposição de forças alheias a nossa compreensão; em parte por sua própria iniciativa. Eu me lembro que ele sofreu muito por essa escolha porque era bastante incompreendido e era vítima de cobranças por parte de uma sociedade ainda mais hipócrita do que a de atualmente. E desde aquele tempo jurássico, o Cido já tinha uma queda por desvendar o que está oculto. Inclusive, no ano da graça de nosso senhor Jusus Cristo de 1995, eu ganhei dos nossos pais o jogo Scotland Yard. Eu passava dias para resolver um caso; o Cido quase sempre resolvia o caso durante a leitura da ficha. Somente muito tempo depois eu descobri o segredo dele para casos de suspense. Querem saber qual? Eu teria de matá-los se contasse rs! Então, por favor, morram todos de inveja ao saberem que eu vivi a pré-historia do Doutor Cido junto com ele.

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  3. Uma honra os dois grandes sagitarianos da minha vida, meu irmão e meu ex-sogro, serem os primeiros a comentar este post.

    Vou responder ao comentário de ambos logo mais.

    Abraços imensos a vocês.

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  4. Cido, lendo esse texto me recordei da sua orientação na minha iniciação científica. Lembro que estava perdido no obscurantismo da vida acadêmica e você me apresentou Freud, texto em que ele analisa o mestres dos mestres - Leonardo Da Vinci- mudando toda a estrutura da minha pesquisa. Agradeço sempre por ter sido orientado por você que me trouxe outra visão de mundo, de Arte e de ser Professor. Abração!

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